quinta-feira, 24 de março de 2022

os anjos não tocam violino

O anjo pressentira a minha noite, o chão negro de onde brotava a vida, e sabia como isso seria mortal.

E, se eu pudesse gritar, gritaria: porque eu também lhe estendera as minhas mãos - amávamo-nos, amávamo-nos - e eu sabia e eu sabia o ser que amava e por quem era amado: a minha própria noite.

Que se amem, e se apavorem um do outro - disse ele, o que deixara tudo acontecer e agora aparecia a um pórtico superior, lá no alto, junto do mastro vazio.

Temem a loucura um do outro - disse ele - e é isso que se amam.

Depressa, depressa.

Era um crime.

Os anjos não tocam violino.

(...)

In Herberto Helder, Apresentação do Rosto, Porto Editora.

Sem comentários:

Enviar um comentário