segunda-feira, 28 de março de 2022
Onde vão parar as coisas que perdem na terra?
sábado, 26 de março de 2022
Equinócio
quinta-feira, 24 de março de 2022
os anjos não tocam violino
O anjo pressentira a minha noite, o chão negro de onde brotava a vida, e sabia como isso seria mortal.
E, se eu pudesse gritar, gritaria: porque eu também lhe estendera as minhas mãos - amávamo-nos, amávamo-nos - e eu sabia e eu sabia o ser que amava e por quem era amado: a minha própria noite.
Que se amem, e se apavorem um do outro - disse ele, o que deixara tudo acontecer e agora aparecia a um pórtico superior, lá no alto, junto do mastro vazio.
Temem a loucura um do outro - disse ele - e é isso que se amam.
Depressa, depressa.
Era um crime.
Os anjos não tocam violino.
(...)
In Herberto Helder, Apresentação do Rosto, Porto Editora.
Bohème
E ali estávamos nós de novo na plateia do São Carlos, eu enterrada num vison comprado em segunda mão e roída pela fome, Mimi, já gelada e tuberculosa, a destilar as últimas gotas da sua paixão, Rodolfo a banhar-se na mais comovente onda de negação e outra vez o mesmo pensamento, aquele que sempre me assalta nestes momentos de extrema tragédia: mas porque é que na ópera as pessoas demoram tanto tempo a morrer?
quarta-feira, 23 de março de 2022
breve síntese dos dias que não contei
Ainda me impressiona a chuva triste que se cola às costas das mãos e que não se consegue sacudir com um gesto impaciente.
Ainda me assusta o olhar delator dos loucos quando se cruza com o meu e reage com a efusão de quem encontra um amigo num mercado chinês.
Ainda detesto a nostalgia do pôr-do-sol e das flores que murcham nas jarras e do musgo nas lápides sob a última luz da tarde.
Ainda sonho que sigo um coelho e me perco no subterrâneo surrealista das coisas bonitas e fascinantes onde Alice e a Rainha de Copas são as duas faces do espelho.
Ainda trago no peito a mancha escura da memória dos dias em que não fui feliz todos os dias.