terça-feira, 16 de fevereiro de 2021
Carnival
O que me impressionou, ao longo dos seis quilómetros que percorri junto ao rio nesta manhã de carnaval, foi a obliteração dos sonhos. Nenhuma fada, nenhuma rainha, nenhuma princesa, nem sequer uma única bruxa. Nenhum pirata, nenhum super herói, nenhum cowboy, nem sequer um palhaço. Vi uma única criança mascarada. Vestiram-na de velha, retratada na miopia de uns óculos de aros pretos, vestido de flores e colar de pérolas e um manto preto apoiado no respetivo cajado. A única família que passeou uma criança mascarada, encerrou-a num traje de velha deprimida. À falta de flores, borboletas, criaturas mitológicas e salvadores do mundo, ocorreu-me que a magia foi salva do outro lado do espelho. Como na canção do Chico Buarque, haverá talvez, escondido, numa qualquer parte do mundo, um país onde se refugiaram os sonhos.
sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021
Das manhãs da normalidade possível
O dia nasceu sob o signo do sol. Parecendo que não, é uma variável relevante.
Hoje comprei uma couve e uns tomates no mini mercado da esquina e regressei a casa com eles, dentro de uns sacos transparentes, para fazer o almoço.
Pode haver alguma felicidade nisso de se escolher uns tomates maduros, com rama e tudo, e de os pousar na bancada da cozinha e ficar a pensar que são os tomates ideais para aquilo que queríamos fazer para o almoço.
Aprendi, entretanto, que a felicidade é mais simples e concreta do que poderíamos imaginar. Já não preciso de encontrar a metáfora perfeita num poema. Uns tomates adequados ao prato têm a mesma aptidão para desencadear no meu cérebro o mecanismo da libertação da serotonina. É uma informação útil. Vidas poderiam ter-se salvo se os seus titulares tivessem aprendido a tirar proveito dos pequenos nadas do universo. Aposto que metade dos suicidas nunca desenvolveu o gosto pela culinária, nem percebeu a energia libertadora que existe entre uma faca e os alimentos crus.
Depois li uma coisa no Henrique Bento Fialho e lembrei-me do Joe Dassin e passei parte do final da manhã a ouvi-lo na cozinha.
- E se tu não existisses, pá, porque haveria eu de existir?
Perguntei ao capitão Strut quando regressou a casa e me surpreendeu na cozinha a esfaquear os tomates do mini mercado.
O capitão Strut tem o salutar hábito de nunca responder às minhas perguntas estúpidas. Pegou-me na mão e, em silêncio, dançou comigo o resto da música.
Foi uma boa manhã.
domingo, 7 de fevereiro de 2021
Fevereiro
Fevereiro avança
indiferente aos nossos mortos e moribundos.
A natureza ri-se das dores dos homens
E dá-lhes, por exemplo, esta inoportuna chuva
de fevereiro.
Os dias não esperam que fechem as feridas dos animais.
Ignoram a ética do luto.
Caiu fevereiro sobre os nossos mortos e moribundos.
A chuva assusta as vidraças da janela,
afoga a papoila que se esforça por nascer,
escorre pela campa do meu último morto e
enlameia as patas do próximo.
Há sessenta noites que todos os dias
são regados pela tristeza.
Ensopou o tecido e colou-se aos ossos.
Por vezes, dou por mim a sacudi-los,
no gesto atávico do animal incomodado.
Se houvesse um raio de sol,
deitar-me-ia nele,
encostada às paredes da rua,
com o focinho de encontro ao chão.
Mas não há sol, nem paredes, nem chão.
Só esta chuva triste,
e fevereiro,
e o desrespeito da natureza pelo tempo
que demoram a sarar, as feridas dos animais.
Hologramas
Fiquei a pensar que talvez exista
em todas as imagens, de todas as coisas que compõem o universo e dos seus compositores, um holograma de uma borboleta de asas abertas.
Talvez seja imprescindível encostar o nariz à imagem e afasta-la muito lentamente e fixar o olhar no ponto que é tanto exato quanto irrepetível e misterioso. Perdermo-nos na dose certa de estrabismo, revirar os olhos para dentro, acreditar na existência da borboleta de asas abertas.
É o anti-Aleph. Não o ponto vazio que nos mostra todas as coisas que compõem o universo, mas o ponto cheio que nos mostra o espaço vazio que existe em todas as coisas que compõem o universo.
Bem sei que o consolo da ideia de uma borboleta de asas abertas no interior das coisas é um holograma. Mas também assim deus e a poesia e ninguém parece especialmente perturbado com isso.
sábado, 6 de fevereiro de 2021
Confins
Noutros tempos, passei longos dias e ainda mais vastas noites confinada dentro da minha cabeça. O confinamento interior parece-me, de todas as perdas de liberdade, a mais violenta. O cérebro projeta-se, como um hamster histérico, às voltas numa rodinha de plástico. E nós ficamos a girar no interior do brinquedo até que a exaustão nos salve do engodo. Se a loucura não chegar primeiro.
Para quem foi obrigado a estar fechado dentro da sua própria cabeça, o confinamento sanitário tem a leveza e o arejo de um passeio numa praia vazia. E os tempos de não existência, na sua irrealidade, na sua bizarria, sempre nos trazem o silêncio que pode ser motor de uma qualquer forma de crescimento.
(pese embora no meu caso, até agora, só o tenha notado nas indesejáveis raízes do cabelo)
sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021
É necessário dançar antes que a morte venha e nos apague a cara
Diz Gonçalo M. Tavares, “é necessário dançar antes que a morte venha e nos apague a cara”. Antes de nos apagar a cara, a morte escurece-nos o coração. E esse não dispiciendo detalhe, parecendo que não, reforça a urgência da receita. É necessário dançar. É imperioso deixar que a música submeta todos os nossos músculos. Até o do coração. Só a música nos pode salvar.
quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021
A morte do pai
O pai morreu
e ele, que era duro, endureceu mais.
Informou da existência do cadáver
como quem relembra um pormenor.
Amava o pai, mas o coração é assim
(a lei da sobrevivência)
esconde-se quando o querem matar.
Gonçalo M Tavares, 1, Relógio D’água.