sábado, 19 de abril de 2014

Estar

De todas as formas que os homens inventaram de fugir de si próprios, parecem-me ser as viagens a única que inclui a possibilidade do reencontro.
Em Verona, não cheguei a cuspir no túmulo de Romeu, mas, por uma noite, tive a varanda de Julieta a sós para mim, e foi tempo suficiente para perceber o poder que a poesia exerce na sublimação falseadora da realidade. Naqueles vinte metros quadrados de chão milhões de amantes fizeram promessas que não cumpriram e outras centenas de milhares fecharam a cadeado um amor que, por certo, já se perdeu na atmosfera. A maioria ter-lhe-á sobrevivido para ir trancar a cadeado um outro futuro amor, talvez naquela ponte de Paris.
O amor é apenas um estado de espírito.
Nas vinhas de Chianti, não senti a vertigem de um suspiro no meu pescoço, mas percebi que a terra tem mais força do que o mar e que a amizade é um sentimento infinitamente mais gratuito e fundado do que o amor.
Também não consegui descobrir se se comem favas na Toscana, mas posso jurar que combinam muito bem com o tal do chianti. 
Vi o por-do-sol debruçada na Ponte Vecchia de Florença e não senti a falta de ninguém.
Vi o nascer do sol deitada na Praça de São Marcos em Veneza e não senti a falta de ninguém.
Desta vez não dancei o "As Time goes By" ao som dos músicos do Caffè Florian. Mas dancei o tango do Piazzola e a nostalgia não deturpou os passos desfeitos pelo riso.
Só quem nunca se desintegrou ignora a paz que existe no acto de estar inteiro, num lado qualquer.
Em Itália estive.
E esta manhã consegui, finalmente, reunir a coragem suficiente para pedir um cartão continente à menina da caixa. 
Porque talvez o mundo real até não seja assim tão insuportável.

1 comentário:

  1. Mais do que a viagem, talvez seja o chegar, o descobrir, o deixar que os sentidos sejam plenos, que nos faz estar: onde tudo é novo, o piloto ainda não é, não pode ser, automático.

    Bom regresso!

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