segunda-feira, 30 de setembro de 2013
domingo, 29 de setembro de 2013
No sofá da sala
Um dos maiores inconvenientes das redes sociais é tornarem impossível o exercício do direito ao esquecimento. O esquecimento, na sua mais doce obliteração absoluta da nossa memória. Aquele esquecimento tão completo que ficamos de de boca ligeiramente aberta e olhar espantado quando dois ou três anos depois a televisão, um amigo, uma fotografia esquecida, nos lembra que no mundo, para além das outras de que nos lembramos, também existe aquela pessoa.
As redes sociais roubam-nos o exercício desse direito sadio. As pessoas saem das nossas vidas mas continuam a ocupar espaço no nosso computador. São músicas cheias de sentidos equívocos em que o you tanto podemos ser nós, como a anterior, a próxima ou oneself; são frases enigmáticas a denunciar estados de espírito misteriosos; são comentários idiotas que nos fazem perguntar se a pessoa está drogada ou se nós é que em tempos estivemos drogados; são rostos espalhados por toda a parte; o perfil do lado direito com uma praia conhecida em plano de fundo; o perfil do lado esquerdo com uma estante onde reparamos num livro novo.
É a brutal exibição pública dos detalhes da felicidade doméstica a afrontar o nosso direito de querer que o outro desapareça.
Uma pequena morte, uma morte privada, uma morte só nossa...
É o direito a essa forma de morte do outro que as redes sociais nos tiram. Não podemos ignorar quem continua a respirar a vinte centímetros do nosso pescoço. E não podemos desamigá-los porque isso seria uma declaração pública de não indiferença. Seria uma ainda forma de comunicação. Uma cobarde confissão de incómodo.
Eles estão ali e é como se tivéssemos que viver com eles para sempre sentados no sofá da sala.
sábado, 28 de setembro de 2013
Dos julgamentos de carácter
Uma verdade que estará algures entre a injustiça de esperarmos dos outros as nossas deficiências morais e a inocência de acreditarmos que serão melhores do que nós.
terça-feira, 24 de setembro de 2013
vem no Wallace
“The so-called ‘psychotically depressed’ person who tries to kill herself doesn’t do so out of quote ‘hopelessness’ or any abstract conviction that life’s assets and debits do not square. And surely not because death seems suddenly appealing. The person in whom Its invisible agony reaches a certain unendurable level will kill herself the same way a trapped person will eventually jump from the window of a burning high-rise. Make no mistake about people who leap from burning windows. Their terror of falling from a great height is still just as great as it would be for you or me standing speculatively at the same window just checking out the view; i.e. the fear of falling remains a constant. The variable here is the other terror, the fire’s flames: when the flames get close enough, falling to death becomes the slightly less terrible of two terrors. It’s not desiring the fall; it’s terror of the flames. And yet nobody down on the sidewalk, looking up and yelling ‘Don’t!’ and ‘Hang on!’, can understand the jump. Not really. You’d have to have personally been trapped and felt flames to really understand a terror way beyond falling.”
David Foster Wallace, Infinite Jest
Perigo de Derrocada
Ali. Hoje. À entrada da minha praia.
E nunca um aviso me pareceu tão sério ou oportuno.
"Perigo de Derrocada"
E nunca um aviso me pareceu tão sério ou oportuno.
"Perigo de Derrocada"
domingo, 22 de setembro de 2013
Akira II
II
Akira era uma esteta. Escolheu para morrer uma linda noite de lua cheia com a neblina zero a garantir a consagração da mais bonita tela que pintou na vida. Durante muitas horas o seu corpo branco emoldurado por um kimono vermelho sangue, jazeu deitado e perfeito naquele banco de jardim. O braço nu que pendia sem que a mão chegasse a tocar no solo. O joelho direito ligeiramente mais elevado que o esquerdo. A cabeça voltada sobre o ombro, afundada no ombro, a tornar impossível não evocar a metáfora de Leda, presa num cisne para toda a eternidade. É inviável que a combinação destes elementos tenha sido obra do acaso.
A lua há-de ter iluminado o brilhante cenário de si própria, na solidão de um corpo abandonado pela alma, desertado da própria mente, num banco de um dos jardins de Tóquio.
E se nos tivesse sido possível surpreender Akira morta debaixo da quietude da lua cheia a tingir de azul a alvura da pele de Akira morta saberíamos que a beleza, a inusitada beleza das coisas, aquela beleza que nos ataca a curva das pernas quando somos surpreendidos por um Caravaggio ao dobrar da esquina, não só pode ter lugar num cenário de tragédia, como, porventura, até nele terá a sua morada privilegiada.
Foi isto que viu o casal de corujas que se abrigou na árvore da frente.
Porque o guarda que, na manhã seguinte, sacou do seu bastão para enxotar outra vadia, adormecida sobre a propriedade pública, ao tocar na perdida, recebeu apenas por resposta um olhar verde, fixo num universo cheio de nada. E o olhar de Akira morta foi de tal forma impressivo que o guarda que a encontrou durante muito tempo não viu mais nada.
sábado, 21 de setembro de 2013
das assombrações
A primeira notificação do Facebook, alerta-me para uma fotografia, ainda tirada nos meus dias, em que um ignorante das nossas regras de queima de arquivos cometeu a gaffe de te identificar numa expressão de felicidade histérica.
A segunda notificação, refere-se a um comentário feito por alguém que não nos conhece e é a citação de uma frase de David Foster Wallace, em The Pale King:
"Every love story is a ghost story."
O meu cérebro processou as duas informações em simultâneo.
terça-feira, 17 de setembro de 2013
the message in a bottle
Em tempos conheci um homem cujo maior sonho era encontrar uma mensagem dentro de uma garrafa.
Vi-o navegar de olhos postos na superfície da água, desviar-se da rota para recolher qualquer objeto que brilhasse e desfazer-se numa expressão de deceção diante de mais uma garrafa vazia.
No dia seguinte haveria de continuar e tenho a certeza que ainda hoje por lá anda. Há muitos anos que revista o mar à procura da sua mensagem dentro de uma garrafa.
Foi a segunda pessoa que conheci na vida com maior desatenção às garrafas cheias de mensagens que, em terra, aqueles que nos são próximos atiram de encontro aos nossos pés.
Falta-me a legitimidade para a censura, pois a primeira sou eu própria.
domingo, 15 de setembro de 2013
Diário de Bordo #2
Latitude 36º 53' 35 N
Longitude 27º 17' 20 E
Deixámos a Sardenha para trás há várias semanas. Só foi possível largar aquela estância turística decadente porque, desta vez, não caí na asneira de levar a partida a referendo. A minha experiência de capitã pirata tem-me ensinado que, em geral, a democracia é uma coisa má e a ditadura infinitamente mais prática. Concedo-lhe alguma eficácia nos estados europeus, onde um grupo de pessoas a que se convencionou chamar o legislador, se encarrega de neutralizar os efeitos da democracia reduzindo-a a uma mera sensação psicológica, ao nível dos fenómenos da alucinação coletiva. Mas nós, dentro deste navio, não temos leis, paciência para as fazer, ou moral para as aplicar. Para evitar confusões, decidi reduzir a fórmula de organização política a duas variáveis da mesma equação: eu mando, os outros obedecem.
Antevendo contestações, com a ajuda do Viking psicopata Adhriminir, o cozinheiro pirata e de Álvaro de Campos, o engenheiro naval, organizei uma festa na véspera da partida. Anunciámos uma happy hour de Margaritas entre a uma e as duas manhã e a minha tripulação, apesar de aqui no navio nunca ter pago por coisa alguma, ainda está de tal forma condicionada pelos efeitos da sociedade mercantilista de que fugimos, que, perante a publicidade de uma borla, não pensa duas vezes antes de se embebedar até cair para o lado.
Acordámos já ao largo do mediterrâneo com os gritos histéricos de Gualtiero, o Italiano, que, vendo-se sequestrado, percebeu que iria faltar ao encontro com uma tal de Anna Belle que tinha conhecido num bar resmenga cheio de turistas franceses. Lembrei-lhe que todos nós temos uma sina e a dele é o azar ao amor e recorri a um ou dois ensinamentos do tempo em que fui budista para o convencer que é melhor entregar-se ao fado do que resistir-lhe e vê-lo exponenciado em fardo nas próximas mil reencarnações. Convenceu-se quando invoquei o argumento experiência própria.
No segundo dia de navegação, depois de debelada a ressaca, a tripulação estava tão furiosa com aquilo do sequestro, que decidi canalizar a energia destrutiva para o treino na atividade que, afinal, é o centro da nossa missão. Pilhar, roubar, aterrorizar pessoas e dominar os mares e o mundo.
Cruzámo-nos, entre o final das águas italianas e o início das gregas, com um barquinho de pescadores chamado Helenis e eu logo aproveitei a oportunidade para introduzir neste grupo o prazer pela vitória.
Em cinco minutos burilámos um esquema maligno e muito original que passou por irmos todos para o convés, pedir socorro, fingindo um início de naufrágio. Os pescadores aproximaram-se, uma equipa constituída pelos presidiários e liderada por Gualtiero, o Italiano, saltou para a barcaça e, aproveitando o pasmo com as nossas vestes carnavalescas, apoderámo-nos de pescadores e pescado.
Comemorámos com um magnífico jantar de sargo grelhado, regado com Soalheiro Alvarinho Primeiras Vinhas 2011, servido pelos pescadores que fizemos nossos escravos. Os ânimos acalmaram-se e a paz voltou a instalar-se neste navio. Os bloggers tiraram fotografias ao peixe para colocarem na internet, os poetas declamaram umas coisas sobre escamas translúcidas sob o luar do sal, os românticos concentraram a sua sina de desgosto em novos objetos, os ex presidiários ficaram quietos a contemplar o calendário com mulheres nuas que roubaram aos pescadores…
Quanto a estes últimos, contava restituí-los à liberdade no dia seguinte, amarrados aos restos da barcaça, depois de me prometerem que iriam à televisão pública contar que tinham sido barbaramente torturados e mentir sobe um arsenal de armas químicas a bordo.
Mas quando os pobres diabos me imploraram que os deixasse ficar, argumentando com a exibição das fotografias das suas mulheres por comparação com a beleza sofisticada das nossas bloggers, a comiseração apoderou-se de mim e faltou-me a coragem para os devolver àquela vida de miséria estética.
Ficámos com mais três inúteis tripulantes e largámos no mar os restos do Helenis, onde cosemos uma réplica da nossa bandeira, na esperança que sobre nós venha a recair a acusação de homicídio dos pescadores.
Akira, I
I
Akira procurou um banco num dos jardins de Tóquio e sentou-se para morrer.
Não sei se Akira era suficientemente organizada para escolher racionalmente um jardim e um banco dentro do jardim. Talvez tenha estudado com afinco a história botânica da cidade para construir uma sepultura com sentido. O terceiro banco a contar da entrada Norte pode, ou não, ter sido um acaso.
Nunca saberemos quanto tempo, ou se algum, despendeu Akira na investigação do melhor local para morrer. Muitas ou nenhuma noite debruçada sobre um Sony Vaio, dos brancos, com os cabelos escuros a cair sobre o teclado e uma luz de fundo azulada, a coligir informações sobre a história dos jardins e a cruzá-las com a posição estrategicamente favorável à ressurreição. Para usar a informação, num ou noutro sentido, consoante a vontade de um regresso rápido sobre outras vestes. Talvez mais propícias à arte de viver.
O leitor romântico gostaria de uma janela de oportunidade que lhe permita acreditar que aquele jardim, aquele banco, fizeram parte da história da morte de Akira ainda antes da morte da Akira ser uma história. Um rapaz que lhe pegou na mão lívida escondida numas luvas de pele azul céu e lhe prometeu um amor eterno interrompido dois meses depois por um telefonema de uma mulher do passado que por sua vez definhava no tédio cansado de um casamento frustrado. O tédio é a principal causa de morte.
Akira num vislumbre de esperança que é essa promessa de felicidade amorosa nas palavras dos apaixonados. O último minuto em que o sorriso lhe saiu sem o cheiro do plástico.
O leitor romântico ficaria desiludido com a verdade.
Dentro do jardim, em frente do banco onde Akira se sentou para morrer, nenhuma árvore com um coração desenhado a canivete suiço e duas vogais a marcar o território virtual .
Apenas um monte de lixo vegetal que um varredor de jardim deixou arrumado de encontro a um canteiro…
Blue Jasmine
Em primeiro lugar, o Blue Jasmine está mal classificado. Não é uma comédia, é um drama. Só a insensível dificuldade de identificação com Jasmine pode fazer com que alguém se divirta a assistir ao desmoronamento da personalidade de uma mulher que luta contra a loucura.
Em segundo lugar, não havendo uma nota de absurdo no filme e sendo até, provavelmente, o filme mais realista de Woody Allen, não percebo o que querem dizer aqueles que afirmam que é um regresso do Woody Allen típico.
Aliás, diria até que não é um Woody Allen, é um Cate Blanchett.
E se não aparecer para aí outra a fazer de deficiente ou de desgraçadinha, a senhora vai ganhar o Óscar.
sábado, 14 de setembro de 2013
são as águas de março
Hoje de manhã as águas de março chegaram ao meu sul. A chuva entrou-me nos ouvidos antes de todas as outras coisas e sentou-se à espera. A mulher que apanha o lixo na rua queixa-se que a capa da chuva lhe faz calor e garante que tem estado assim desde madrugada. Sem descanso. Finjo um ar incomodado de pura solidariedade. A chuva obriga-nos a sair da rotina. Torna-nos impossível a nossa mesa na esplanada, faz-nos descobrir beirais que não sabíamos que ali estavam e o cão olha para mim confuso, como se também ele percebesse agora o que é perder o rasto da casa.
Hoje de manhã as águas de março chegaram ao meu sul. Talvez escreva um conto começado pela frase Akira procurou um banco num dos jardins de Tóquio e sentou-se para morrer.
Há vozes soltas que se libertam da minha cabeça. Coisas simples. Um colega que se congratula com as novas funções que lhe permitem ter tempo para pensar. Pensar nas coisas, diz ele com um ar pensativo. A Lykke Li a cantar dance, dance, dance. O livreiro que lamenta ainda não me ter conseguido o livro sobre escritores suicidas mas promete esforçar-se. As palavras de um escritor suicida que um dia me prometeu não morrer antes de mim. A criança que me pergunta se é meu amigo o vagabundo deitado na rua. A dona do café a dizer-me que está complicado hoje. O treinador do cão que me garante que os humanos estão todos doidos. Uma mulher que me mostra uma casa e me pergunta desconfiada se tenho a certeza que preciso de três quartos.
E depois as vozes voam pela rua e desfazem-se de encontro às poças lamacentas que os meus pés evitam. E eu contente por conseguir fazer isto tão bem. Evitar as poças de lama. Talvez devesse antes descalçar-me e juntar os pés às vozes e, como a Lykke Li, dance, dance, dance. Voltar o rosto para as águas de março e deixá-lo molhar-se.
Afinal, tenho motivos para festejar a chegada da chuva. Passou-se um ano inteiro e, desta vez, consegui não destruir a vida a ninguém.
Akira procurou um banco num dos jardins de Tóquio e sentou-se para morrer.
De uma forma ou de outra, o suicídio é o natural destino dos escritores.
De uma forma ou de outra, o suicídio é o natural destino dos escritores.
terça-feira, 10 de setembro de 2013
It´s just a cigarette
It's just a cigarette & it cannot be that bad
Honey don't you love me and you know it makes me sad?
It's just a cigarette like you always used to do
I was different then, I don't need them to be cool
It's just a cigarette and it harms your pretty lungs
Well it's only twice a week so there's not much of a chance
It's just a cigarette it'll soon be only ten
Honey can't you trust me when I want to stop I can
(...)
domingo, 8 de setembro de 2013
que lutem até ao último fôlego e o resultado seja um empate
e um dia os corações criaram imunidade às palavras e, com isso, as palavras tornaram-se inúteis, primeiro, e odiosas, depois, e então passaram a agredir-se por fotografia.
uma constelação tatuada num pulso contra a reprodução do original no céu. uma jóia que brilha no dedo contra o nácar de uma concha perfeita. uma onda que desmaia na praia vazia de história contra uma baía que renasce nas rochas da memória...
o desenho de um coração doente na esperança de uma resposta feita da imagem do original, sacada de um peito aberto a bisturi.
lâmina n.º 10, se fazes favor.
sexta-feira, 6 de setembro de 2013
o que ficou daquilo que (se) partiu
Não me lembro do toque das mãos de gigante sobre as minhas costas. Nem da respiração a diluir-se-me nas têmporas. Ou do tom da voz a embalar uma permanente cantiga. Não me lembro de nenhum brilho nos olhos quando afundados numa gargalhada.
Mas há um som que nunca esquecerei.
Ouço-o parada nas filas de trânsito; deitada ao sol numa praia repleta; sentada em frente à secretária a sós com o silêncio; no meio da azáfama de um mercado de sábado.
O som do avião que me trouxe de volta, no instante em que as rodas se separaram da pista.