quarta-feira, 2 de março de 2011

coração

há quem simplesmente não o possa manter intacto por toda a vida.

situação semelhante ao do que herda um palacete e nem para o travejamento do telhado tem. um tal imóvel carece de restauros, caríssimos. manutenção.
soalho.
ordem no jardim.
não se desiste do legado. escolhe-se viver só em parcelas que a cada meia dúzia de invernos se vão transferindo para os andares inferiores, diminuindo em área. o tempo cuida de ir degradando os salões. ecos que se vão fechando em quartos e salas que se trancam. chaves que se perdem. um par de incêndios que o descuido deixou arder.
chega-se aos baixos dos criados, onde se confina a três divisões, de entre as quais só uma é assoalhada. últimos alvéolos de um pulmão calcinado de fumo.

por papel de parede, recordações. por onde os seus olhos vagueiam nos dias. e nalgumas noites em claro.
a roupa de cama já não cheira a alfazema. já não há quem a coloque a corar.
ainda assim, sente-se em si. paixões domadas como velhos sabujos esquecidos dos dias de caça. dormitam aos seus pés.

ela entra, decadente. reconhece os cantos e senta-se à lareira. deixam-se ficar. estão em casa.

6 comentários:

  1. Corações decadentes...
    A casa onde morou o meu, desfez-se quando tocaram à campainha e tentei abrir a porta...
    Mas era um casebre insalubre e não um solar como o teu.

    ResponderEliminar
  2. o solar não é meu.
    gostava de o habitar.
    acontece que só aceitam visitas.

    ResponderEliminar
  3. - por onde andaste?

    - por aí.

    - já acreditas em mim?

    - já. impressionante, nunca teres tido um filho.

    - ia acabar numa assoalhada, não teria lugar para ele.

    - mas, afinal, que merda de coração é esse?

    - é como tu disseste um dia: o homem que, por não saber amar, não parava de o fazer.

    - e amaste muito?

    - viúvas e viúvas de sempre. mas ficaste-me, estupor. sabia que ias aparecer. eu já não tenho sangue para ti.

    - óptimo. agora só tens coração, certo?

    - que remédio…

    - então aninha-te, que chegou o nosso tempo.

    sobe a camisa e mostra as meias cinzentas, de lacinhos, uma amputada do enfeite.

    – trouxe-as, just in case.

    ele começou a chorar, como sempre chorou: desamparo de mãe. aflitivo. soluço. vómito.

    ela deu-lhe a mão e sairam dali, no primeiro vôo para paris. ia-lhe mostrar as ruinas do que contou e as novidades que outros entretanto inventaram.

    ….

    no avião, ele pensou: a ciência ajuda a circulação. és um velho tarado, tu.

    ResponderEliminar
  4. Excelente blog, belíssima imagem, delicado texto. Encantadora, no seu conjunto de sensibilidade e força, esta edição. E também apreciei bastante a história aparecida no último comentário! :-) Acho que não entrava num blog há quase um ano. Olha, foi sorte! :-)

    (Camuflagens)

    ResponderEliminar
  5. @ Camuflagens

    :)

    tem razão. é curioso não entrar num blog há quase um ano, ter vindo dar a este e, justamente, ao "coração".

    seja bem-vindo.

    ResponderEliminar