segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Possessa pelos sítios, como os gatos



Estive na cidade do costume que, ao fim e ao cabo, não é minha porque, na verdade, não tenho nenhuma. Fruto das idas e vindas. Não tenho um lugar mas tenho sítios. Mas tenho pessoas. E tenho coisas que, normalmente, são como etiquetas das pessoas que eu tenho. E saudades, essas tenho sempre muitas porque me habituei a tê-las. Não daquela forma dolorosa, ao jeito fado, já que esse não é nada o meu jeito. As minhas saudades são dignas e conformadas. Não acomodadas. Apenas conformadas, como se conformam as pessoas com os seus feitios que são defeitos e que sabem vão piorar com o tempo. E gostam.
Não tenho cidade e até tenho. A questão é que tenho mais que uma, como se tivesse nascido de uma forma simultânea em duplicado. Sou de mim aquilo a que se chamava sósia e que a ciência aprimorou como clone.

Talvez seja esta a razão de não me assustar a duplicação de sentimentos. Consigo sentir o mesmo por mais que uma pessoa ao mesmo tempo.

Talvez seja esta a mesma razão da minha fraqueza de toxicomaníaca de algumas coisas, aos olhos dos outros patéticas, mas que fixam a minha satisfação a determinados locais.

Noutro dia, depois de mais uma visita a um comerciante do qual dependo (apesar da distância da minha casa que, entretanto, aumentou muito), tive a coragem de atravessar a rua e entrar na Praça, um pouco acima.

Ainda não tinha lá voltado depois da remodelação facínora que fez conjunto com outras obras públicas vergonhosas que golpearam de morte a cidade que já vinha a falecer de mansinho.

Dali eu voltava, aos Sábados de manhã, com uma braçada de flores. E o resto que a minha mãe queria comprar. As flores eram as únicas compras que eram só minhas. E havia aquele cheiro ardido a pescado fresco. Vendia-se e comprava-se no chão. Alguns à sombra, aqueles que tinham bancadas à volta do pátio interior. As lojas de fora eram as peixarias que mantinham os passeios constantemente encharcados como que para poupar os peixes e o polvo das saudades do mar. Um quiosque com montra onde conviviam o Pato Donald e uma morena impossível de desenhar ou uma loira inédita nas capas da Playboy. A micro-ourivesaria onde se vendiam relógios Swatch. A casa dos linhos e bordados. Outra de chás e produtos naturais. A dos bichos, onde chegámos a comprar periquitos e peixinhos, daqueles que morriam dois meses depois sem mais nem porquê.

O comércio resistiu emoldurado por tapumes durante todo o tempo em que a reabilitação durou. Cortada a fita da inauguração, parece-me envergonhado nos seus caixilhos novos de vidros duplos. A fachada, essa cobriram-na de um amarelo e um cinzento impróprios.
Lá dentro não há mais canteiros para se expor as novidades da horta, nem o sol aquece o percurso das compras. Há elevadores, extintores, dísticos a proibir e a permitir e a informar, escadas de emergência, pavimentos lisos, degraus assinalados.

Há paredes e tecto onde havia uma arena aberta. E não cheira a nada. Onde cheirava a tanto.

Eu seria uma viúva mais consolada se fosse o mar a arrasar a minha Praça. Como fez à igreja matriz, em tempos.
Mas, ao mar, já não o deixam bater assim.

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