quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

INVEJA



Não foi um acto voluntário. Nunca tive a capacidade de retirar qualquer espécie de prazer do confronto com as minhas fraquezas. Resisti à intimação familiar para mais uma primeira comunhão. Inventei razões plausíveis para a impossibilidade da minha comparência. Fui veemente no grau de dificuldades feito de deveres maiores. Em suma, fiz o que pude para me proteger da minha inveja. Acabei desarmada por um telefonema de um rapazinho de oito anos. Quando me vi sem saída, quis acreditar que talvez a família tivesse mudado de congregação. Ou que o padre tivesse sido deportado para uma aldeia perdida no meio nenhures. Ou que, na pior das hipóteses, tivesse recebido uma ordem do Vaticano para deixar de transbordar felicidade.
Todas as minhas esperanças se desvaneceram logo que cheguei à igreja.
No centro da nave, vestido de batina verde-esmeralda e ladeado de dezenas de criancinhas de branco com uma rosa igualmente branca entre as mãos, brilhava a insistente personificação da felicidade humana.
Desta vez o sermão era sobre Maria. Mas Maria, nas palavras daquele homem, não parecia uma mulher engravidada contra a vontade por um espírito que se anunciou santo. Uma fêmea obrigada a parir sem epidural numa caverna insalubre na presença de um burro e de uma vaca. Uma mãe que acompanha o calvário de um filho desobediente e egomaníaco. Não. Maria era uma mulher que tresandava uma satisfação pessoal superior à de Angelina Jolie. As assustadoras personagens do novo testamento, descritas por ele, seriam o perigoso equivalente aos monstrinhos da rua sésamo num dia de festa.
Houve um instante em que a felicidade estampada no rosto daquela criatura de deus assumiu contornos tão insuportáveis que fui obrigada a desviar o olhar para desfazer o patético sorriso plácido que, contra a minha vontade, se apoderou dos meus músculos faciais.
E no final da indecorosa exibição de alegria, e ainda sob o efeito da influência maléfica da inveja, dei por mim a exigir respostas do rapazinho de oito anos.
- Aquele é o teu padre, não é?
- É o meu confessador.
- Diz-se confessor. Costumas falar com ele?
- Ás vezes. Na catequese.
- E está sempre assim tão contente ou é só quando as pessoas estão a assistir?
- É sempre assim.
- E tu achas isso normal?
- Para adulto não.
- Quando te confessaste deu-te alguma penitência?
- Não.
- E contaste que bates na tua irmã, chateias a tua avó e fazes a vida negra à tua mãe?
- Contei tudo.
- E ele?
- Riu-se e disse-me que fizesse as pessoas felizes.

3 comentários:

  1. Ui! Kinky! Muito, muito, muito perverso. A quantidade de Marias em látex que me passaram frente aos olhos, a tresandarem satisfação pessoal. A tresandarem! Até a Jolie corou.

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