quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Indecoroso

Olho para ti, aí em pé, e percebo que nada entendes de tudo isto.
Acumulas o balcão da loja com as limpezas num escritório. É a penitência que pagas pelo ímpeto da paixão por um qualquer Leandro que te engravidou antes de tempo. Trocaste a escola por uma tiara de brilhantes tão falsos que nem sequer compensou a falta de cauda no vestido de noiva que te convenceram que deveria ser simples. Uma questão de decoro.
Com o teu novo estado civil de casada adquiriste o estado social de desempregada. Usaste-o o melhor que conseguiste dentro do apartamento suburbano onde uma imobiliária e um banco te convenceram que serias feliz. O teu um qualquer Leandro rapidamente se fartou da falta de sal nos pratos que lhe ias servindo enquanto a tua barriga de grávida ocupava cada vez mais espaço.
Depois de teres parido sozinha e humilhada num hospital público onde as cesarianas são prémio de quarenta e oitos horas de dor animal, pareceu-te inútil chorar por o teu um qualquer Leandro que, antes de ter tempo para montar a cama de grades que pediste emprestada à tua prima professora, bateu com a porta de casa. Outra questão de decoro.
Com o teu novo estado civil de divorciada adquiriste o estatuto económico de pobre. Usaste-o o melhor que conseguiste para vender a tal casa onde já não ias ser feliz e entregares-te a dois trabalhos que te devolveram um qualquer princípio de dignidade. Os mil euros que rendeu a venda da casa, depois de pago o empréstimo ao banco e as custas do divórcio, decidiste investi-los numa carta de condução.
Olhas para mim, aí em pé, e percebes que não entendo nada disto.
Entregas-me todas as lágrimas de revolta que poupaste até chegares aqui. Mas eu não tenho onde as guardar. Não fui eu quem te roubou o destino e esqueceram-se de me dar o poder de to devolver.
Eu também me arrependo da tua decisão de entrares num carro emprestado para treinares estacionamentos na véspera do exame de condução. Eu também não me perdoo por acabares por te confundir entre o acelerador e o travão. Eu também não percebo o que é que uma criança estava ali a fazer.
E confesso tudo. Até o trágico desperdício de dignidade que são as tuas lágrimas choradas aqui, num sítio onde não deverias estar.
Demoro dez minutos a transformar-te em criminosa e não olho para ti quando termino. Uma última questão de decoro.

5 comentários:

  1. É nestas alturas que compreendo que nunca poderia ocupar a tua cadeira. O número de variaveis em jogo e gigantesco.

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  2. Maria, como em tudo na vida, aprende-se rapidamente a atender ao que interessa e a deixar o resto para a literatura.É a vida. infelizmente.

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  3. Aqui fechada, lembro-me de ti. Não tiveste a coragem de me olhar nos olhos, e é esse o alento que ainda me traz de pé.

    Sabias que não era suposto, que não era assim que deveria ser. Sabias que os meus erros não eram tantos e tão graves para que aquela coisa chamada destino me marcasse de forma tão doída. Como se o castigo por tentar ser feliz fosse mais infelicidade. E mais. E mais.

    Do que disseste recordo o tom. Quando falamos aspirando as palavras nota-se que o que nos sai boca fora gostava era de ficar lá dentro. Sentias-te tão ou mais frágil do que eu, porque nas mãos a cantavas, num dedo que não parava de afagar o papel enquanto os restantes o olhavam, estupefactos. Essa fragilidade de ser. Do ser. A percepção de a existência não passar de um jogo de tabuleiro, um monopólio de acasos, de ir para a prisão sem passar pela casa de partida e sem receber os dois contos. É possível. Pode acontecer.

    Aqui fechada, lembro-me de ti. E do ódio - que já passou -, por te ter invejado tudo. O salário, a posição, o poder, a vida. Mas pensei depois no resto, no que não sabia. Serias feliz? Estarias de bem contigo? Com o mundo? Ou tinhas tragédias em gavetas não conhecidas, mortalhas misturadas com lençóis? Estarias fechada, como eu? Mesmo sem estar? A pior das penas? A prisão em si? Ao fim e ao cabo, jogavas o mesmo jogo que eu, quem me diria da tua sorte?

    Aqui fechada, lembro-me de ti. E agora tenho tempo para sarar. Dói-me a ausência das crias, da que me foi tirada e da que tirei a outrem. Mas lembrar-me de ti dá-me alento. Porque a humanidade que não podias mostrar foi a remissão dos meus pecados.

    Tem um Feliz Natal. Eu, aqui fechada, vou-me lembrar de ti. E não te condeno.

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  4. Muito obrigada, Cuca e noodles.

    Maria Helena

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