terça-feira, 27 de abril de 2010

Génese de uma história

Se me pedisses uma história, se me pedisses mesmo, se quisesses verdadeiramente que te escrevesse uma história, eu teria que perceber porquê.
Teria que mergulhar nos teus motivos e através do gosto que me ficasse na pele identificar com exactidão a parte emissora do pedido. O lado negro, o lado branco, o lado cinzento e provavelmente ainda um outro, cor-de-rosa, que suponho existir sem que alguma vez me tenha sido mostrado.
Depois de me inteirar da cor do dia, como numa ementa de uma tasca familiar, teria que olhar dentro dos teus olhos para neles ler os motivos pelos quais quererias que te escrevesse uma história.
O escrutínio nada teria a ver com qualquer necessidade de te inventar uma fábula da cor da tua persona do dia. A tua história, já existe. Será a mesma independentemente daquilo eu vir no dia em que me pedires que a escreva.
O problema, o único problema, enrolado no célebre pragmatismo da autora, é que ainda não inventaram cemitérios de histórias. E eu não sei o que se faz às histórias que escrevemos quando o destinatário já não as quer ouvir mais.
O drama das histórias que se inventam para ser contadas a uma única pessoa é que quando essa pessoa vai embora, ficam suspensas, a flutuar no limbo das coisas de ninguém.
Escrever-te uma história num mundo em que não há cemitérios em que se depositem as palavras que escorrem de nós, pode ter consequências eternas. Uma vez escrita a história, e se não se conseguirem endossar as palavras, elas ficam para sempre, ali, a perseguir-nos na lembrança de um dono que não o soube ser.
E, se quisesses mesmo que te escrevesse uma história, terias que me dizer que ela cabe dentro de ti.
Para que eu possa ter a certeza que, no dia em que te fores embora, me libertarás de todas as palavras que inventar e as levarás contigo...
…para o maravilhoso mundo das pessoas e da histórias que contámos um dia.

1 comentário:

  1. É exactamente isto que penso da poesia. É raro gostar porque, normalmente, as palavras não cabem em mim. Penso que apenas cabem nos respectivos destinatários. Como um vestido feito ao corpo: só assim o tecido desenha as perfeições e imperfeições únicas do modelo.
    As palavras deviam ser assim. Por medida. Pessoais e intransmissíveis. Mas ao contrário do que pode parecer, o ónus está no escritor. Tem que observar bem o modelo. E tecer a história.

    Podes escrever-me uma. Sabes bem que tens muito por onde. Tentarei ser um jazigo à altura dessa derrama.

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