sábado, 30 de setembro de 2017

Espólio

Não sei quantas daquelas palavras me pertencem. Quantas me foram roubadas. Quantas ofereci. Quantas me acertam e quantas me falham. Quantas erradamente faço minhas. Quantas são oferenda que rejeito. 
Não sei e já não resta quem me possa ensiná-lo. 

sábado, 23 de setembro de 2017

Diário de Bordo

No final de agosto, soltámos amarras e navegámos os últimos dias da canícula em direção ao mar das Caraíbas. 
Diz-se que fugimos de um saque mal sucedido, mas, como sempre, há mais poesia na verdade. 
Esta intrépida tripulação pirata e a sua capitã, que suportam os círculos do inferno de Dante desde que nisso alguma vantagem imaginem, são incapazes de sofrer a nostalgia de um início de outono. 
Foi do abrupto anoitecer de setembro, das folhas das árvores na calçada, da chuva mansa que perfura os corações, do vento que corta noites sem lua, do definhamento que preenche o outono, que fugimos. 
Roubámos de manhã, gastámos pela tardinha, navegámos de noite e  chegámos a Tortuga a tempo dos festejos da reentrée.
Ainda as amarras não estavam presas, já polly, o papagaio pirata, guinchava recados da terra: 
Jack está cá.
Passaremos os próximos dias no conforto deste porto que sempre nos recebe com o morno abraço da normalidade. 
E não sei se já tinha dito, mas Jack está cá.

Uma marca no espaço

No universo já não havia um incluente e um incluído, mas apenas uma espessura geral de sinais sobrepostos e aglutinados que ocupava todo o volume do espaço, era um borrifo contínuo, densíssimo, um reticulado de linhas e traços e relevos e incisões, o universo estava rabiscado por todos os lados, ao longo de todas as dimensões. Já não havia maneira de fixar um ponto de referência: a galáxia continuava a dar voltas mas eu já não conseguia contá-las, qualquer ponto poderia ser o de partida, qualquer sinal em cima dos outros poderia ser o meu, mas descobri-lo não serviria de nada, de tal modo era claro que independentemente dos sinais o espaço não existia e se calhar nunca tinha existido. 

Todas as Cosmicómicas, Italo Calvino, Teorema. 

O princípio do fim

A primeira folha que se solta da árvore e é guiada pelo vento à esquina do outono.  Um cabelo branco que uma manhã brilha mais do que o espelho que o revela. O pelotão das aves que se atrasam no caminho do sol sobre uma ceara madura. A má palavra que se formou na boca amarga de um amante. O virar da página que antecede as letras do título do último capítulo. Sessenta segundos para a meia na noite nas vésperas de um solstício. A primeira madrugada de chuva de agosto. A nota inicial do compasso lento na tecla do piano. A nódoa que alastra no pano de puro branco. O roçar das asas da mosca na prata metálica da teia. 
Esse instante de indiferença em que esqueci o teu nome. 

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Lua Nova

Até o rio, cujo leito não lhe permite perder-se, procura na noite escura a sua lua. 
E é esta a minha frágil alegação de defesa.

terça-feira, 19 de setembro de 2017

Mãos vazias

Entrego as mãos à manicure com o cuidado de quem lhe deposita um Fabergé. Ela estica-me os dedos e olha-me com expressão inquisidora. Não adianta explicar que estas mãos te pertenceram. Que conservam a memória da forma das tuas. Que dentro delas coube o mundo. 
Há-de devolver-mas tal como as vê: vazias. 

Devenire

Não sei que lua existe lá fora. 
As minhas janelas abrem para as árvores e, se quisesse, daqui, poderia tocar-lhes as folhas. 
Não há céu nesta nova vida. 
Nem mar.
Só terra. 
Tanta terra. Tanta terra. Tanta terra.

sábado, 16 de setembro de 2017

Piras

Ardeu durante muitos dias, no centro da terra, a gigantesca pira onde incinerámos o amor. Queimámos em fogo lento o triste património de um inventário comum. Levantámos as mãos e sacudimos grilhetas estelares.  Dançámos sobre o mar e vimos, na alba, um céu cor de liberdade. Abraçámos o esquecimento e eram doces as suas asas. 
Diz-se que ensurdecemos aos nossos próprios nomes.

Mas depois vieram as chuvas e, juntamente com a suja lama de cinzas, sobrou tudo quanto não sabe arder: Os acordes que são a música. As metáforas da poesia. Uma constelação sazonal. O pesadelo que um homem desenhou em Altamira. O granito e o basalto. A fome. O fundo de todos os mares. 

Tanto quanto baste para que nunca nada se perca. 

Fábula Antiga

No princípio do mundo o Amor não era cego;
Via mesmo através da escuridão cerrada 
Com pupilas de Lince e olhos de Morcego.

Mas um dia, brincando, a Demência, irritada,
Num ímpeto de fúria os seus olhos vazou; 
Foi a Demência logo às feras condenada.

Mas Júpiter, sorrindo, a pena comutou. 
A Demência ficou apenas obrigada
A acompanhar o Amor, visto que ela o cegou,

Como um pobre que leva um cego pela estrada.
Unidos desde então por invisíveis laços,
Quando o Amor empreende a mais simples jornada, 
Vai a Demência adiante a conduzir-lhe os paços.

António Feijó, in, 366 Poemas que Falam de Amor, Vasco Graça Moura, Quetzal.

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

How to build a home

Tal como se diz de alguns mortos, que não sabem que o são, assim sucede com os recentes desexilados. É como ser fantasma ao contrário. Afantasmar. Desfantasmar. Infantasmar. Os dedos, de  súbito, conseguem empurrar as portas; os espelhos passam a ser habitados por uma expressão qualquer; o corpo materializa-se diante dos olhos daqueles que, entretanto, se esqueceram de que existimos. 
Até a casa é preciso aprender a possuir. Esboço nas paredes cada vez menos nuas os traços do meu coração, esperando fazê-la minha depois de impregnar de jazz os tecidos e de deixar a poesia ascender ao nível do pó dos candeeiros.

Reparei que, para os mesmos efeitos mas com aparente maior sucesso, o meu cão esfrega-se nas coisas. 

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Aniversários

Escondi as mãos dentro dos bolsos para que ele não visse um resto de solidão que ainda trago agarrado às unhas. Ambos fingimos o acaso, silenciando o facto de se terem passado exatamente cinco anos e uma hora. Os sessenta minutos, presumo, que durou a batalha interior. Um dia ganharemos a guerra. Eu terei as unhas limpas. Ele não terá bandeira alguma pela qual lutar. Seremos o que fica depois do esquecimento e a paz, como o previu a canção, abater-se-á sobre ambos. Estaremos mortos. 
Então, num qualquer crepúsculo, haverá um homem e uma mulher que são todos os homens e todas as mulheres e a eles pertencerá esta infinita, inexplicável, saudade. 

domingo, 3 de setembro de 2017

Dilemas

Como é meu hábito, chego depois de toda a gente ao maior dilema da vida adulta: Como arrumar os livros na estante? Depois de duas horas de indecisão cheguei a resultados inaceitáveis. Ponderei separar a não ficção, a poesia e a filosofia. Fiquei sem saber o que fazer com a mitologia e, por razões de justiça, pareceu-me bem juntá-la à filosofia. Quando me apercebi, já zizek dormia encostado à Bíblia. 
As dificuldades não se limitam às subespécies. É evidente que Borges em nenhuma circunstância pode ficar ao lado de Bukovski. Se arrumar todo o último na poesia, incluindo os contos, encosto Borges a Candance Bushnel, a senhora do Sexo e a Cidade. Optei por isolá-lo, acabando por perceber que a obra publicada em português não se adapta ao tamanho de nenhuma das minhas estantes. Não aceito espaços vazios em redor de Borges. Ocorreu-me juntá-lo às suas queridas Mil e Uma Noites ou ao D. Quixote. A primeira solução não serve porque tenho várias edições (todas más). A segunda não enche a prateleira. Outra dificuldade é a classificação de obras de autores como Plutarco, Ovídeo e pequenas bizarrias como as Viagens de Marco Polo. O que fazer com esta gente que não escreve nem ficção, nem não ficção, nem poesia? E os guias de viagem? Podem misturar-se com livros sobre viagens que não são guias? E os sul-americanos? Não seria preferível juntar o realismo mágico todo no mesmo canto? Pode o Asterix viver ao lado do Calvin?
Como é que as pessoas resolvem estes problemas?
Era tão mais fácil ser itinerante exilada.