domingo, 31 de julho de 2016

Deslucidez

Como o padre António Isabel do conto de Gabriel Garcia Márquez, "Um Dia depois do sábado", também eu acredito, em momentos de menor lucidez, que é possível alcançar a felicidade na terra, quando não está muito calor. 

sexta-feira, 29 de julho de 2016

Gaiolas

Pendurados na grande gaiola de grades da cor do falso ouro, despedimo-nos o número de vezes suficiente para entreter uma plateia de deuses entediada até à crueldade. 
Despedir-nos para sempre foi o número circense em que nos tornámos exímios. Creio que vieram de longe, deixando um rasto de pó de estrelas, antes de se sentarem em apinhadas nuvens a ver-nos dançar tangos últimos, uns atrás dos outros. 
Da última vez substituíram-nos o mar por um rio. Há qualquer coisa de definitivo nos rios que não se pressente na infinitude de um oceano único. 
Veio uma noite maior do que as outras e os deuses cobriram a gaiola com um pano de seda azul e esqueceram-se de nós, aqui presos, ao som de uma milena desafinada e sem outro ofício que não seja o de nos despedirmos para sempre. 

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Palavras

A bem da libertação das palavras, queimou todas as cartas físicas e apagou as eletrónicas. Então as palavras soltaram-se da triste prisão da sua história e voaram livres pelos céus, em bandos migratórios, na busca de um reino onde um resto de verdade lhes restituísse o sentido da sua existência. Da varanda do convés, vi-as passar esta manhã. Voavam demasiado alto para que as pudesse alcançar com os braços erguidos. E, de uma forma ou de outra, nenhuma delas me pertenceu de verdade.

quarta-feira, 27 de julho de 2016

O mundo todo

O adágio chegou ao fim e eu recebi o silêncio sem leve sombra de comoção. Não me soube comover a música, ou a lua, ou um verso, ou qualquer uma das auroras que se seguiram. 
É assim que deve ser.
O mundo encolheu até ao absurdo tamanho de um berlinde de vidro colorido.
Pode ver-se através dele.
Essa pequena esfera que transporto junto ao corpo e que há de ficar esquecida na areia da praia, dentro de um dos bolsos dos calções, é o mundo todo. 

segunda-feira, 25 de julho de 2016

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Disso, da magia dos blogues


Outro Entre, in, TalqualmenteOutro 

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Desertos


A mim, que sou do mar, não sei de onde me vem esta saudade do deserto. Uma aurora feita de pó, o sabor da areia na boca, a recordação de um fio de azul a reaparecer por entre as dunas, o cheiro da gruta onde desenhámos o que talvez fosse o futuro. 
Essa noite feita de estrelas e de frio à qual sempre regresso quando adormeço. 

sábado, 16 de julho de 2016

Olhar para trás

A propósito de passagem sobre a mulher de Lot, em Caim (de José Saramago), lembro-me de Orfeu e Eurídice, esses desgraçados, e pergunto-me o que tanto enfurece os deuses nas pessoas que olham para trás. A mulher de Lot, transformada em estátua de sal por ter ousado voltar o rosto para as chamas que, nas suas costas, consumiam sodoma e gomorra. Eurídice, devolvida às profundezas do reino dos mortos, pela indiscrição ansiosa de Orfeu, que olhou para trás, para avistar a amada.
Olhar para trás não é apenas uma forma de evitar os espelhos, é a única maneira de compreender o seu reflexo. Talvez os deuses incriminem a autoconsciência. Essa empresa concorrente no negócio monopolista do destino. 

sexta-feira, 15 de julho de 2016

Filhos de deus

Pela fé, Abel ofereceu a Deus um sacrifício melhor do que o de Caim. Por causa da sua fé, Deus considerou-o seu amigo e aceitou com agrado as suas ofertas. E é pela fé que Abel, embora tenha morrido, ainda fala.
(Hebreus, 11, 4)
LIVRO DOS DISPARATES

Citação retirada de Caim, José Saramago. 

Todos os homicídios têm dezenas de justificações possíveis. É inútil tentar compreendê-las. 

Das férias grandes

Como as crianças, conto os anos começando pelo mês de setembro. 
Este ano termina hoje. 
Teve horas a mais. Vivi ocasos a menos. Perdi duas ou três luas. Esqueci alguns encontros com o mar. Não colecionei todos os céus. Dei mais aos livros do que às pessoas. Recebi incomparavelmente mais das pessoas do que dos livros. Descobri que a música é uma obsessão de eficácia superior à compulsão para fazer muffins. Renovei o exílio por outro ano. Talvez seja a minha pátria. Continuei a falhar, mas falhei melhor. 



quinta-feira, 14 de julho de 2016

Movimento

Este blogue também adere ao movimento EU EXIJO SER PLAGIADA.

LEBENSWEISHEITSPIELEREI

A enfraquecer, cai a luz do sol
Na tarde. Os orgulhoso e os fortes
Já partiram.

Aqueles que restaram são os incompletos,
Os finalmentemente humanos,
Nativos de uma esfera diminuída 

A sua indigência é uma indigência 
Que é a indigência da luz 
Uma palidez estelar pendurada nos fios

Aos poucos, a pobreza 
do vazio outonal transforma-se
Num olhar, em poucas palavras ditas.

Cada pessoa toca-nos por completo 
Com aquilo que é e como é, 
Na estéril grandeza da anulação.  

Wallace Stevens, traduzido do inglês por Cuca, a Pirata


Weaker and weaker, the sunlight falls
In the afternoon. The proud and the strong
Have departed.

Those that are left are the unaccomplished,

The finally human,
Natives of a dwindled sphere.

Their indigence is an indigence

That is an indigence of the light,
A stellar pallor that hangs on the threads.

Little by little, the poverty

Of autumnal space becomes
A look, a few words spoken.

Each person completely touches us

With what he is and as he is,
In the stale grandeur of annihilation.

(Versão original)

Poemness

À tardinha, naquela hora definitiva que precede o esmorecer do dia, quando a casa parece subitamente mais vazia e se repara no ondular embalado das cortinas de linho e não há jazz que encha o espaço e os miúdos que brincam na rua já recolheram ao banho e sabemos que nada poderemos fazer para agarrar o dia que começa a dissolver-se na noite, preciso, às vezes, de um poema. Então procuro-o na estante e em folhas soltas e em cadernos de notas, e acontece-me, às vezes, não o encontrar em Fiama, em Stevens e nem sequer nos vários volumes de Borges. E então esqueço o Globo, que fica, assim, suspenso, a ondular ao ritmo das cortinas, que é também o ritmo do vento e do mar, e procuro melhor o poema que me falta.
E, às vezes, sabes, não consigo encontrá-lo em canto em canto algum, porque o poema que me falta pertence à superfície plana que é o teu espólio dos poemas que me faltam, à tardinha, naquela hora que precede o esmorecer do dia, quando a casa parece subitamente mais vazia, e apenas tu o podes encontrar por, para, mim. Às vezes.

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Os homens que nos amam a todas


Um dos motivos pelos quais vim para Pirata foi para fugir dos homens que me amam. 
Neste navio ninguém me ama e, parecendo que não, esse é um factor não desprezível no aumento da minha qualidade de vida. 
Como a minha existência tem o condão de se pautar pela falta de originalidade, sou obrigada a presumir que não haja mulher com mais de trinta e cinco anos que se preze que não tenha pelo menos cinco homens na sua vida que se dedicam à tarefa de amarem loucamente. Claro que falo de um amor especial. Falo daquele tipo de amor louco, permanente e insistente que alguns homens conseguem manter durante toda a vida, enquanto vivem a dita, a fazer outras coisas mais interessantes, como por exemplo, ir viver para África, viajar pelo mundo inteiro e estar casado com outras.
Os homens que me amam são pessoas fantásticas que, contrariando o mito de que o sexo masculino não consegue fazer mais do que uma tarefa de cada vez, ocupam-se da atividade de me amar profundamente ao mesmo tempo que fazem safaris no Quénia, enfiam anéis de brilhantes da Tiffanys a outras, limpam o ranho dos filhos e compram tampões para as respetivas mulheres nas raras fases em que não estão grávidas.
Estas criaturas maravilhosas carregam com elas o seu eterno e omnipresente amor por mim enquanto vão vivendo vidas feitas de um sacrifício atroz, sempre em nome de um interesse superior, que tanto pode ser a necessidade de construir uma carreira internacional como a simples obediência ao dever moral de estarem para ali, até que a morte os colha.
Quando o tédio do quotidiano os faz sentir tão miseráveis que até parece que estão já mortos, resta-lhes o consolo interior de se saberem pessoas especiais, consistindo tal especialidade na circunstância de me amarem para sempre. Nessas alturas, imbuídos pela grandeza da paixão que há tantos anos sentem por mim, os olhos brilham-lhes, os lábios entreabrem-se para deixar escapar um profundo suspiro, a consciência desse sentimento garante-lhes a congregação das duas gotas de adrenalina que lhes circulam nas veias, as suas vidas assumem as cores do grandioso sacrifício que fizeram e o espelho lá de casa devolve-lhes a imagem de um Ulisses que um dia há-de retornar a coisa nenhuma.
Os homens que me amam seriam mais suportáveis se aquela nefasta reunião das duas gotas de adrenalina que ainda lhes restam não os levasse, invariavelmente, à urgente necessidade de entrarem em contacto comigo - estatisticamente falando, quando eu estou a dormir, a trabalhar ou a comprar sapatos -  para me comunicarem o facto de, contra todas as expetativas e pese embora as minhas preces noturnas, ainda me amarem loucamente. Depois da comunicação sofredora, uma vez cometida esta loucura arriscadíssima que quase mudou radicalmente o curso das suas vidas, as harmonas lá se recompõem, África parece mais confortável, o ranho dos filhos mais doce, os tampões das mulheres menos deprimentes e torna-se mais fácil retornarem à tarefa de me amar loucamente enquanto vivem as suas vidas.
Estes homens que me privilegiam com o seu amor, é claro, não me têm qualquer préstimo. Não me mudam os pneus do carro, não me fazem canja quando tenho gripe, não me lavam o cabelo, não testemunham a minha vida, nem sequer me aparecem na frente. A sua missão é carregarem ao longo das suas vidas o seu inútil amor por mim e comunicar-mo comovidamente, pelo menos, a cada seis meses. Também me telefonam todos no dia do meu aniversário, normalmente, de seguida, por forma a que, nalguns anos, já me interroguei se estariam todos na fila da mesma cabine telefónica.
Os homens que me amam, antes de eu vir para Pirata e cortar amarras com a minha existência anterior, eram uma praga metafísica na minha vida.
Além de me interromperem o sono, o trabalho e o prazer da aquisição de sapatos, eram a armadilha dos dias maus. Aqueles em que a falta de horas dormidas, o cansaço da labuta ou a inexistência do número 36 naquelas sandálias fantásticas, me rasteiravam um pé e eu caía na asneira de me perguntar se a minha vida poderia ter sido mais feliz se se desse o caso de algum desses homens que me amam não ser tão obscenamente cobarde.
Aqui, sentada no deck deste navio, com o "Estudos Sobre o Amor", do Gasset, caído sobre o colo e a lua a brilhar na minha frente, não tenho a menor dúvida que a resposta é uma rotunda negativa.




domingo, 10 de julho de 2016

Sódio


Tenho nos ombros os restos do mesmo mar que esta manhã te lambeu os pés. 

É o suportável limite de intimidade. 

Diário de Bordo

Neste navio não há ar condicionado. Suporto com facilidade todas as outras limitações civilizacionais inerentes ao facto de viver no meio do mar, acompanhada por intrépidos piratas. Não sinto falta da televisão que antes me fazias as vezes de aquário ou de lareira, consoante a estação do ano; nem das livrarias, que se tornam prescindíveis quando se descobrem os cinco ou seis livros de onde derivam todos os outros; nem dos cinemas, agora transformados em salas de piquenique fast food; nem dos serviços de estética, que são inúteis quando se assume que a castidade continua a ser a maneira mais inteligente de evitar o amor. 
Tenho, contudo, a nostalgia do ar condicionado. Não há brisa marítima que se compare ao luxo de carregar num botão que, em três minutos, nos destempere. 
Fui ao baú buscar o leque vermelho de bolinhas negras que comprei em Sevilha quando ainda era burguesa, deitei-me no convés com um livro e pedi a Andrhiminir, o cozinheiro pirata, que me abanasse com ele durante meia hora. Mas o imprestável viking, no geral pouco comunicativo, aproveita-se destes momentos para reivindicar melhores condições de trabalho, como uma segunda bimbi ou uma faca de cozinha elétrica que viu num folheto promocional, e faz mais barulho do que o motor dos ares condicionados antigos. 
Foi então que me lembrei que nunca assaltámos nenhum bacalhoeiro e que essa é uma desculpa tão boa como outra qualquer para abandonarmos as Caraíbas e rumarmos aos Fiordes. 
A verdade é que o meu sonho sempre foi ter um icebergue para uso exclusivo.

Ouvido à saída da praia

- erradicar não existe.
- ah, existe, existe.
- não. O que existe é irradiar. Estás a inventar coisas.
- existe! Irradiar é para o calor.
- não existe erradicar!
- quando chegarmos a casa já te mostro o que é quer dizer!

Dado o tom exaltado da discussão, ocorreu-me que o meio de prova que ele tinha em mente talvez não fosse um inocente dicionário. 

sábado, 9 de julho de 2016

35•

Trinta e cinco graus. Ainda.
Esqueci o chá de romã no congelador e quando regressei estava ultrapassado aquele ponto em que o chá gelado se transforma em gelado de chá.
O cão continua deitado no chão, onde o deixei, indiferente ao suborno do biscoito, desesperado por um pouco de frescura e a olhar para mim como se me responsabilizasse por este inferno. 
Estando fora de questão suportar a praia debaixo deste calor, ocorreu-me que a coisa mais próxima que poderia fazer era comprar biquínis. Comprei muitos. Alguns com lantejoulas e pregadeiras. Não servem para a praia mas ficam muito bem no mosaico da sala. Único sítio onde eu e o cão conseguimos existir. Aqui deitados, lado a lado, responsabizando-nos mutuamente, ele pelo calor, eu pelas minhas dores nas costas.
Lá fora, numa varanda próxima, um rapaz canta o Nessun Dorma de Puccini. Desligo a música para o ouvir. 
As gaivotas também não dormem já há várias noites. 
Estão trinta e cinco graus e faltam oito dias para as férias grandes. 
Daqui, do chão da sala, de onde vos escrevo, o mundo parece-me cada vez mais estranho.

sexta-feira, 8 de julho de 2016

O admirável mundo dos relaxantes musculares

Parece-me que o sol já era tórrido e infernal quando, às duas e meia da manhã, fui arrancada da onírica sensação de deserto por uma insuportável dor nas costas. Não estava deitada na areia, coberta pelos panos da tenda berbere, mas a cama sabia àquilo que sabem cada um dos meio-dia no deserto.
Já alguém deve ter estabelecido uma correlação científica de proporcionalidade inversa entre as temperaturas demasiado elevadas e o grau de tolerância à dor. É tão óbvia que julgo impossível não estar documentada.
Mais de doze horas e muitos ibuprofenos e paracetamois de diversas cores depois, apresentaram-me essa maravilha da medicina que dá pelo nome genérico de relaxante muscular. 
A perspetiva empírica permite-me jurar que a alma é um músculo. 
Há toda uma lixeira de angústias, pequenos e grandes afazeres, preocupações quotidianas de vários níveis de gravidade. 
E depois há o efeito incinerador de um comprimido de tamanho inofensivo que faz desaparecer as dores nas costas e todo o globo que sobre elas assenta. 
É noite e lá fora, dizem-me, estão trinta e cinco graus. 

segunda-feira, 4 de julho de 2016

domingo, 3 de julho de 2016

Sorria, está a tocar o Danúbio Azul

Na terceira linha da pauta estava inscrita a palavra simile - que, partilho com quem não sabe, na música, é uma instrução de repetição - e que foi por mim assumida como Smile
Então, juntaram-se a minha rigorosa determinação em aprender sem aldrabices, a cega odediência aos comandos, o terror ao leve desvio à composição e as inoportunas férias da minha professora de piano. 
Apesar das dores nos dedos da mão esquerda, de uma certa frustração por não acertar com o ritmo e de alguma perplexidade com aquela instrução,  consegui passar um considerável número de horas a esforçar-me por sorrir sempre que tentava tocar aquela frase do Danúbio Azul. 
E agora hei-de sorrir, para sempre e sem esforço, de todas as vezes que voltar a tocar aquela passagem, assim se comprovando, ainda que de uma estranha forma, aquela coisa dos vícios de má aprendizagem.

Sanidade mental

Todas as cidades deveriam ter um cemitério de amores perdidos. Uma aliança entre a geografia e a desilusão. Comprávamos amorosas lápides de mármore branco que, em ocasionais mas sentidas visitas, decoraríamos com coroas fúnebres de violetas ou margaridas. 
E um nome inscrito em letras douradas, ali, entre milhares de outros nomes, sob o sol e sob a chuva, a desvanecer-se ao ritmo do nosso esquecimento.
Como seria terapêutico, ter um depósito de amores perdidos. Um sítio onde os deixar, quando já não nos trazem qualquer préstimo e nem sequer cabem na organização doméstica.

sábado, 2 de julho de 2016

O velho, o rapaz e o burro


Os que nos envergonharam por termos chorado Paris, são os mesmos que nos condenam por calarmos Istambul. 

Verões indignos

Sonhei, em tempos, com um pátio andaluz, balouços de verga e almofadas de linho, com vista para a porta de madeira vermelha de uma casa térrea. Era o entardecer e uma guitarra descansava de encontro à cal da parede impossivelmente branca. 
Perguntou-me se os últimos verões foram dignos e, por vício de contradição, obstei ao conceito de dignidade das estações. Então lembrei-me de pequenas felicidades, como a camisola a acordar os nervos dos ombros salgados, a areia encharcada que a última maré do dia estende aos resistentes, o barco abandonado nos juncos que ensombram a barragem vazia, aquele instante em que o corpo cai no sono num colchão a flutuar na piscina silenciosa. Todos eles foram há demasiado tempo.
Percebi o que me queria dizer o sonho. 
É preciso restaurar a dignidade das estações.