domingo, 29 de maio de 2016

Linha editorial

Como manter um blog de dor de corno sem dor de corno? 
 

sábado, 28 de maio de 2016

DOLIDZE, IOANE

pretendia crucificar a Humanidade sem usar madeira e pregos. Dizia para os homens caminharem na direcção uns dos outros de braços abertos, crucificados na promessa de um abraço. 

Afonso Cruz, As Reencarnacões de Pitágoras, Alfaguara.

Comunicações intergalácticas

És um poeta morto. 
E és um bom poeta mas um péssimo morto. 
Bons mortos são aqueles que disfarçados de vento nos vêm uivar à janela. Os que nos eriçam os pelos do pescoço em anticiclones caseiros que nos gelam momentaneamente. Os que, furiosos, fazem bater as portas em sinal de protesto contra as nossas escolhas de vivos. Os que deitam o fogo à cama. Os que nos escondem os anéis. Os que nos escrevem a sangue nos vestidos de veludo. Nota que nem sequer aspiro a recados no espelho embaciado pelo vapor do banho; velas que se acendem sozinhas; uma papoila a voar debaixo dos meus pés  ou enigmas deixados na areia lisa da maré. Suspeitava que não te resignarias a esse papel pop de fantasma de Hollywood. 
Ainda assim, até para os extremos padrões de tolerância com que sempre me abstive de julgar os teus atos, devo dizer-to, és uma miséria de morto.
Nunca te deste ao incómodo de me aparecer em sonhos com diretrizes inspiradas sobre os intricados caminhos da minha existência. Nas raras noites em te sonhei estavas entretido com uma banalidade qualquer e não te dignaste a uma interação memorável. Não me escreveste mails. Não me enviaste do além um único olhar capaz de me trespassar as costas. 
És um morto que teima num contínuo projeto de inexistência infinita. 
Um dia conheci uma mulher que jurava que cada um de nós traz consigo todos os seus mortos e arrasta-os pelo mundo para onde quer que vá. Tentei levar-te a lugares bonitos. Pensei que gostasses dos arranha céus de Nova Iorque, das vinhas de Chianti, ou que te sentisses confortável nos céus da Capadócia. Evitei, para tua exclusiva comodidade, repartições de finanças, centros médicos, supermercados em horas de ponta. 
A tua ingratidão revelou-se tão definitiva quanto a tua morte. 
És o meu primeiro morto. Até a morte me ensinaste. 
E és um péssimo morto. 

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Passaporte para o exílio

Uma vez por ano, invariavelmente no último dia de maio, escolho renovar o passaporte para o exílio. Perguntaram-me, numa tarde de outro maio, do que é que fujo. 
Uma vez por ano ocorre-me que, se algum dia soube a resposta certa a essa pergunta, já a esqueci. 

naked summer sky

the process of my words profane
the poems i still breathe
the soothing silent masterpieces
hanging on the breeze
that brushed me with your spirit
and left my head at ease
that woke me up and lifted me
to see a moment freeze
i still see you naked
in my naked eye
underneath the honeysuckle
naked summer sky
far off dreams i lead with you
in other lives
that gently pass us by
we may never speak again
or wonder why
you woke me up and lifted me
to see a moment freeze
it made me cry
the quiet waters by
and by

Crónica de muitas mortes anunciadas

A forma como nos despedimos é o negativo da imagem do centro da alma.
As únicas despedidas aceitáveis são aquelas que são rápidas, decididas, irrevogáveis.
Não se pode confiar em quem não sabe arrancar o adesivo da pele num gesto firme.


Insignificância

Agora, àquela distância que só a proximidade permite, com a lua fria ao alcance dos dedos, o coração de uma ave na palma das mãos, ou o crepúsculo no interior das pálperas, sei que foi a vulgaridade a nossa única tragédia.

terça-feira, 24 de maio de 2016

domingo, 22 de maio de 2016

Mãos nos bolsos

Um desgosto, uma falta, uma angústia, qualquer saudade, é companhia constante; sombra infalível; testemunha do nosso quotidiano; cão fiel que às vezes nos segue e outras vezes nos guia e sempre nos mantém ocupados, na expressão contida e ligeiramente ausente de quem resolve em permanência um puzzle matemático. 
Sinto-me pois desocupada; inútil; alienada do alienante; enfio as mãos nos bolsos do vestido; esquecendo-me, ainda olho para trás como se para dar passagem à saudade; tomo consciência da minha melhor expressão de estupidez e, em suma, não tenho nada para fazer.
Não imagino porque razão lhe chamam paz de espírito. 

sábado, 21 de maio de 2016

A pantufa desirmanada

Não foi caso único o de Palomar, personagem de Italo Calvino no livro a que deu igual nome, que, de um bazar de pantufas no oriente, regressou à sua terra com uma pantufa maior do que a outra. 
É inevitável, bem o sei, enquanto se coxeia pela rua abaixo, pensar-se naquele que, vítima do mesmo desacerto do grande mercador, noutro lugar do mundo, arrasta consigo um pé apertado pela pantufa que deveria estar calçada no nosso. 
Refletiu Palomar "talvez ele também esteja a pensar em mim neste momento, esperando encontrar-me para proceder à troca. A relação que nos liga é mais concreta e clara do que grande parte das relações que se estabelecem entre os seres humanos. E no entanto nunca nos encontraremos".
Mas ao contrário de Palomar, que continuou a usar as pantufas desirmanadas para manter viva a complementaridade com o seu companheiro de infortúnio, a mim foi-me dada a oportunidade de, fazendo a troca, desfazer o erro. 
Os meus pés estão agora calçados com duas pantufas que me servem e posso também, finalmente, deixar de pensar numa sombra longínqua que, noutra qualquer rua, coxeou a pantufa que me pertence por direito.
Palomar, que tanto pensou sobre este assunto, nada conjeturou, porém, sobre os efeitos da claudicação prolongada na coluna vertebral. 
Há erros do grande mercador que sobrevivem ao milagre da sua própria correção. 

quinta-feira, 19 de maio de 2016

Enfadonha intempestividade

Depusemos as facas, as espadas, deixámos cair a rosa. 
O soalho ecoou os passos de um tango cansado e feito de gestos repetidos. Quando caiu uma noite artificial, a lua envergonhou-se atrás das árvores e as estrelas, creio, desistiram de aparecer. 
Havia uma voz ao fundo que prometia a eternidade ao som de uma guitarra de cordas feridas.
Ouvi o que disse a voz, vi a nossa sombra nos espelhos e pensei que o incorrigível defeito das coisas eternas é a sua constante, enfadonha, intempestividade. 




Chama-anjos

Levei comigo, para lho entregar, um chama-anjos avariado. 
Na primeira vez que lho quis dar, ainda a prata não tinha escurecido no contacto com o meu pescoço e não estava avariado. Nessa ocasião, devolveu-mo à palma da mão que fechou dentro das suas e disse-me que ficasse antes com ele, que não suportaria saber-me desanjada.
Desta vez fui eu que, no último instante, decidi não lho entregar. 
É evidente que, entre os dois, é a mim que um chama-anjos avariado faz mais falta. 

terça-feira, 17 de maio de 2016

Sudários

Quando o céu me surge por baixo dos pés e o chão me pesa nos ombros e as árvores nascem lá em cima e o avesso do mundo tem costuras tão ásperas que ameaçam trespassar-me os ossos, como, por exemplo, agora mesmo, visto a minha t-shirt cinzenta de pirata. Não há desnorte que confunda esta velha t-shirt cinzenta de pirata. É impossível perder o que quer que seja enquanto a mantiver vestida. 
O seu super poder: o sudário de um abraço mais antigo do que o medo.

domingo, 15 de maio de 2016

Inventário

- Um poema manuscrito sobre aves que fazem ninho no meu corpo.
- Meio búzio em estado bastante degradado.
- Um calendário incompleto de pés egípcios em atividades quotidianas diversas.
- Um CD pirateado com duas músicas de Nicolaj Grandjean.
- A figuração da paixão em acrílico sobre cartolina. 
- A constelação Orion em estado natural, como nova. 
- A fotografia de uma baía mágica, bastante usada. 
- A lua cheia.
- Dezenas de músicos de jazz de nomes impronunciáveis.
- A figuração musical da morte em vida, versão piano.
- Uma verdade e uma mentira (indistintas). 
- Uma fava do mar (bem conservada). 

... O inventário da minha loucura. 



Segundas oportunidades


E a quem pode censurar-se a ambição da oportunidade de falhar melhor? 


Respiração reversa

Estou há muitas horas, imóvel, sentada nesta cadeira. Foi aqui que esperei a manhã. A madrugada, atravessei-a no mais denso dos silêncios e o frio exterior foi um raro momento de coerência equilibrada com essa outra forma de frio, que nasce por dentro. Quando ambas as temperaturas coincidem, o coração ganha uma amenidade que, apesar de falsificada, quase nos faz voltar a sentir humanos. 
Enquanto o dia rompia, nos seus tons violeta degradé, ocorreu-me que o degelo do coração não é um processo menos violento e arriscado do que o que envolve a sua congelação. Talvez seja ainda mais arriscado. Até os mais leigos em matéria de culinária, entre os quais me incluo, sabem que não há organismo que, depois de descongelado, possa voltar a congelar-se sem grave perda das suas propriedades essenciais.
Vou ficar à espera da noite, sentada nesta mesma cadeira, de onde vi formar-se a manhã. 
Amanhã, sei-o, acordarei com um coração novo, fresco, pronto a consumir. Um coração de utilização única, integral. Daqueles que já não se podem reservar para mais tarde. Daqueles que, de ora em diante, não mais poderão deixar de bater.


terça-feira, 10 de maio de 2016

O estranho caso dos personagens que desapareciam da história

Num maio distante e de má memória, por ocasião do dia em que o céu se partiu e desfez-se em minúsculas pedras geladas que se espalharam pelo mundo, entrei em casa e abri as janelas para deixar entrar as gaivotas que se vieram abrigar na minha varanda.
Para acompanhar a terrível música do céu a desfazer-se de encontro à calçada, sentei-me ao piano e toquei as primeiras notas. 
Quando o quinto dedo da mão direita repetiu um sol sustenido vi entrar pela janela uma mulher vestida de verde que trazia pendurada no rosto a expressão marmórea dos que abandonaram. Seguiu-a um homem de olhos verdes que exibiam a firmeza de quem viajou o mundo. E um governante escondido por um ramo de flores no passo apressado de quem está atrasado para um encontro. E uma mulher de óculos de massa e camisa branca que seguia o governante. Foi então que, pela mesma janela, entrou uma mulher que carregava junto ao peito um livro cujas letras se sumiam em contínuo anticonto e um mágico que, na sua varinha, dir-se-ia procurar a mulher que um dia fez sumir. 
Levantei-me do piano e chamei Martinica para que servisse um chá àqueles que, soube-o muito depois, eram personagens exiladas das suas próprias estórias. 
Nada perguntei e, confesso, nenhuma estranheza senti. Aceitei há muito que a bizarria é o labirinto no jardim do mundo. Em comum, tinham apenas uma rara obsessão com vozes intermináveis que saíam de telefones e das quais, de uma forma ou de outra e pelas mais diversas razões, todos pareciam fugir. 
Martinica confessou-me então que, não gostando de bizarrias em dias em o que céu se desfaz em pedaços, deu-lhes um chá de sumiço. Sugeriu-me que os fotografasse para memória futura. Expliquei-lhe que me ensinaram que é na memória, e apenas nesta, que devem guardar-se as melhores imagens.
Terminado o chá, a sala ficou subitamente vazia, as pedras deixaram de cair do céu e eu regressei ao piano.
E também esta estória hei de esquecer um dia. 

As origens, aqui. 
E os desenvolvimentos, aqui.

segunda-feira, 9 de maio de 2016

sometime ago

se ficasse mais um segundo, as mãos pousadas na linha imaginária da clavícula, meia frase que se desfaz, a boca entreaberta, um medo que vem do chão, a contabilidade da razão, se ficasse mais um segundo, a paz que pode conter um sorriso, certa música partilhada, os sábados de manhã de chuva, o final de uma canção, o farol iluminado pela lua, o livro de poemas na cadeira de baloiço, se ficasse mais um segundo, a respiração no meu pescoço, a transposição metafísica da distância, as notas de jazz espalhadas no chão, uma febre que vem do início dos tempos, as palavras que nada podem.
Não saberia regressar.

domingo, 8 de maio de 2016

sábado, 7 de maio de 2016

Lisboa insone

A cidade onde eu nunca durmo. 

Desertos

Fomos atravessando o deserto. A lonjura, medimo-la pela nossa pele moribunda, de poros sufocados de areia.  Do cimo das dunas, cumprindo o ancestral saber dos magos, não olhámos nunca nem para trás nem para a frente. O passado foi já demasiado longe para que possamos regressar, o futuro  será ainda uma miragem a poente. Fixámos o olhar rente aos pés, num presente de cansaço, sede e dormência.
E esperamos. Esperamos, apenas, que o desenho dos nossos trilhos volte a cruzar-nos. Que então se abra no deserto um mar azul. 


sexta-feira, 6 de maio de 2016

Desquecer

Esqueci-o inúmeras vezes pois o problema nunca foi o esquecimento. Começo sempre por esmorecer-lhe os contornos do rosto. O meu processo de esquecimento é uma miopia progressiva. Mas há uma ligeira imperfeição, um espaço demasiado grande entre dois dentes, uma marca de varicela na sobrancelha direita, um desnível mínimo na cana do nariz, esses defeitos que o tornam humano, que são a estrutura da minha memória. 
Então, uma manhã, diante de uma chávena de café, a mesa posta na varanda, uma gaivota que se afasta, um cão que a persegue, o gesto de soltar os cabelos de dentro da camisa, diante de uma dessas ninharias, assalta-me esse outro nada que é uma das imperfeições do seu rosto. E a partir desse detalhe, desquecendo-o, reconstruo-lhe o olhar distraído, um sorriso que nasce do fundo do estômago, o andar balançado, a imagem das suas omoplatas a erguer-se de uma multidão anónima, a minha mão muito pequena dentro da sua, uma voz sussurrada.
Esqueci-o inúmeras vezes pois o problema nunca foi o esquecimento. 

segunda-feira, 2 de maio de 2016

domingo, 1 de maio de 2016

Kierkegaard, o Cão Pirata



Esse ingrato, que nem um desenho do dia da mãe foi capaz de me oferecer...

De um reggae de domingo

Há apenas três sítios no mundo onde ainda se ouve uma certa música:
Lá longe, do outro lado do mar, quando a bruma se entranha na pele e uma alma inquieta se debate contra as paredes da sua cela; na minha sala, como sucedâneo figurado de uma boa velha lâmina nas veias, mas isenta de pingos de sangue na carpete e marcas inestéticas no pulso; neste lounge estendido na areia, de abril a novembro, onde, podia jurá-lo, escolhe a música quem também um dia se perdeu nela.