segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Dia Extra


E tu?
O que terias feito se te tivessem dado mais um dia?

Helena de Tróia

Fui Helena naquele final de tarde em que decidimos ser imensamente felizes apesar de tudo. Depois vieram os homens e a guerra e a morte. Vi Tróia aos nossos pés, destruída pelas espadas e pelo ódio dos deuses. E no dia em que o Olimpo votou contra nós, soube, finalmente, que não é possível ser-se imensamente feliz apesar de tudo. 
Então voltei para casa e aceitei o esquecimento. 
Não deixei de ser Helena. Esse instrumento dos deuses para mostrarem aos homens que o amor pode menos do que a guerra.

domingo, 28 de fevereiro de 2016

Destrelada

No extato instante em que Hertz te desligou da minha dimensão, o céu gelou e partiu-se nos milhares de pedaços que começaram a cair sobre o silêncio.
Choveu durante demasiado tempo.
Então fiz como disseste e procurei nas asas de uma estrela o voo rasante do teu colo. 
Mas também as estrelas se escoaram,
através deste chão frio, por baixo dos pés.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

O mundo mais que perfeito

Aqui, nesta torre que construí com os restos do festim do amor, nada me alcança. Nem a desilusão dos espelhos; a dor da perda; a violência da saudade; a doença dos homens; a angústia de um domingo ou o eco da verdade. 
Não me alcançam a tristeza que rói; o fascínio que corrompe ou a esperança que submete. 
E nem sequer a vida. 

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Lifedance

The area dividing the brain and the soul
is affected in many ways by
experience —
some lose all mind and become soul:
insane.
some lose all soul and become mind:
intellectual.
some lose both and become:
accepted.

Charles Bukowski

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Ao domingo as pessoas são mais feias

Eu queria amar a humanidade e comover-me com olhares trocados entre casais em lugares públicos ou notar o gesto lento de uma mão que procura refúgio noutra ou surpreender-me com a expressão da pureza na distração que vai da chávena à boca. 
Mas ao domingo as pessoas são mais feias. 
As luzes dos candeeiros por cima das cabeças iluminam cabelos desconcertados por almofadas mudas a conselhos e restos de maquilhagem em cima de olhos amorfos que não leram antes de adormecer. 
Vieram nos seus fatos de treino que espalharam pelo corpo ainda quente dos cobertores e hoje, é evidente, não tomaram banho. 
E então olhá-los torna-se-me insuportável e desloco a atenção da mesa da frente, disperso-a por todo o restaurante e percebo que nenhum deles se lavou esta manhã. 
Sinto a nostalgia dessas terras onde as pessoas acordam para ir à missa de domingo; os cabelos penteados e presos com ganchos; uma gola bordada em redor do pescoço ensaboado; eles de camisa engomada debaixo do casaco dos casamentos. 
E finda a missa, podem até temperar a costoleta de novilho com o silêncio leve da culpa absolvida, em cantinas comuns. Mas, pelo menos, tomaram banho.
Eu queria amar a humanidade mas ao domingo as pessoas são mais feias.


sábado, 20 de fevereiro de 2016

Diário de Bordo

A vida de Pirata não conhece descanso. Os inimigos insistem em desrespeitar a ética universalmente aceite de não atacar aos fins de semana, quando as pessoas normais estão ocupadas a apanhar sol no convés dos seus navios, a alimentar-se de ostras e a ouvir Kétil Bjornstad perguntando-se quando, afinal, é que a professora de piano nos põe a tocar assim, ao mesmo tempo que lêem a poesia de Borges que é a que melhor combina com jazz, vá-se lá entender porquê. 
Esta tarde, através de secretos meios que não vou aqui revelar para proteger a identidade dos envolvidos, chegou ao meu conhecimento que a vaca que nos foi roubada no início do mês passado, e que umas certas pessoas decidiram perder junto a uma portagem de auto estrada, e que também não vou aqui nomear porque nunca fui de intrigas (e porque já não me lembro se foi a Palmier Encoberto ou Pipoco Mais Salgado, que a história subitamente ficou confusa e era fim de semana e eu estava no convés a apanhar sol e a comer ostras e a ouvir ... já perceberam a ideia) foi vista na posse de uma certa senhora que gere um salão de chá ou lá o que é aquilo.
Por razões óbvias, vagamente relacionadas com a nossa honra, dignidade e mau nome, seremos obrigados a abandonar o calor dos trópicos e a mergulhar no miserável inverno da nação para, de sabres em punho, recuperarmos a nossa vaca Mumu, de quem já nem sequer nos lembrávamos, mas que, agora que outros a têm (ah esse belo princípio universal do amor), sabemos ser a coisa mais importante das nossas vidas. 

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

A equação do amor

Há entre as pessoas que se amam uma estranha forma de pudor que as impede de compartilhar todo um mundo de convicções íntimas.
Os mais distraídos poderão certificar a circunstância qualificativa do sentimento através do instante em que entre os seus pensamentos e a expressão dos mesmos se ergue um inusitado muro de betão que no dia anterior, podiam jurá-lo, não estava ali. 
Num fim de tarde de sábado, sentaram-se num banco em frente ao mar. Compartilhavam o desdém pelo amor, mas já o escondiam um do outro o melhor que sabiam. Ali sentados, tentaram encontrar uma solução para o problema do amor, como quem resolve um inútil enigma antigo. 
Na direção da praia passavam casais de mãos dadas; famílias com crianças pelas mãos; pessoas sozinhas que procuravam no mar a distração de um sábado de início de verão. 
Caiu a noite sobre aquele banco em frente ao mar.
Nessa e nas mil e uma noites que se seguiram não conseguiram solucionar a equação do amor. 
De certa forma, nunca saíram daquele banco, sentados lado a lado, desviando o rosto para melhor esconderem tanto o amor, como o desdém pelo amor, incapazes de solucionar a equação e cegos à vida que, desfilando na sua frente, lhes certificava um resultado que não saberiam reconhecer.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Não há mais nada

Piedade e medo são o homem. Não há mais nada. - Diz Prometeu a Héracles.
Diz Cesare Pavese, em Diálogos com Leucó. 
Sonhei um sonho muito maior. Sonhei o ardor do tango. A dignidade das espadas. A rosa cuspida de encontro ao chão de pedra antiga. A determinação de quem se salva do destino. 
Sonhei a coragem do tigre que encara a sua sombra. 
Mas não há mais nada. 
Apenas a desproporcional combinação de piedade e de medo que, afinal, diz o deus, compõe o homem. 

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Jonas 1.1.2


Naqueles dias, o tempo reinou na terra. E começaram a medir-se os crepúsculos, primeiro, e as horas, os minutos e os segundos, depois. E, assim, sacrificados no templo do tempo, os homens perderam o vício do amor.

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Cuca também contribui para isso do São Valentim

10. º preceito: o fastio (523-542)
Estranha medicina esta que aponta o fastio como remédio para a doença. Mas a lógica é irrepreensível: escasseiam forças e falta coragem? O ânimo vacila e não ajuda? Há uma solução de recurso: usar o prazer além de todos os limites. Mesmo cansado, deve o amante continuar até à exaustão, muito para lá das fronteiras desse mesmo cansaço, quando a sensação de enfartamento se torna insuportável. Farto e exausto, estará mais próximo da repulsa do que do desejo. A fartura há-de, por fim, apagar o amor.


Ovídio, in Remédios contra o Amor, Livros Cotovia

Tanto Espaço

Tanto espaço lá fora.
Onde se perdem as notas de jazz
que trepam pelas paredes de vidro
até ao tecto de mil luzes.
Réplica imperfeita das estrelas
dos homens livres. 

Tanto espaço lá fora.
Onde se ouve o caminhar do vento
que traz nas veias azuis
 a pulsação do mar.
Matriz distante da respiração sufocada
de bailarina de plástico.

os meus pés agrilhoados  
no mecanismo giratório
da tua caixa de música.

E tanto espaço,
lá fora. 













Diário de Bordo

Ao longo da vida já me ofereceram muitas coisas e algumas delas bastante incomuns. Da lista dos presentes bizarros destaco um pequeno monstro da tasmânia; uma fava do mar; as páginas amarelas; uma aliança de casamento achada na berma da estrada; uma faca de finalidade indefinida; um moleskine preenchido com os delírios de um esquizofrénico; um topázio de plástico cor de rosa e um mapa de Portugal em formato desdobrável.
Mas confesso que até agora nunca ninguém se tinha lembrado de me ofertar algo tão excêntrico como uma personagem para o blogue (vd. caixa de comentários).
Decidi aceitar Reboredo, o ortopedista, apesar de ter tido algumas dificuldades para lhe encontrar utilidade entre gente cuja tradição é a perna de pau. 
Mesmo depois de me confessar ter pertencido à Mossad - e toda a gente sabe que nutro um antigo fascínio por israelitas da Mossad- continuo a achar que Reboredo é demasiado educado para poder algum dia dar um bom Pirata.
Um dia depois da sua chegada, já devidamente instalado junto dos poetas (que parecendo que não ainda constituem o grupo mais confiável desta tripulação), entrevistei-o na minha chaise long, no convés. 
Era aquela hora em que o sol se prepara para adormecer no mar e a luz dourada inunda-nos o peito da forma que no yoga nos sugerem que imaginemos e somos invadidos pela sensação plena do the day is done, apesar de não termos feito rigorosamente nada de útil. 
Em silêncio, ouvi Reboredo desfiar as primeiras cinquenta e nove páginas do seu impressionante curriculum, com explicações detatalhadas sobre toda a espécie de ações de formação em homicídio por estrangulamento, homicídio por espancamento e homicídio através do recurso à clássica bala na cabeça, que frequentou lá no curso para agente da Mossad. 
Nessa altura, interrompi-o e perguntei:
- a propósito, sabes dançar?
- obviamente. Está aqui no anexo B. 1. 15. 16 anos de formação em danças clássicas, contemporâneas e modernas.
Foi então que encontrei a utilidade que procurava para Reboredo, médico ortopedista; ex agente da Mossad e combatente na legião estrangeira.
- fantástico! - disse-lhe - vais dar-nos aulas de dança. 

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Relatório de nihil

Entre o acordar e o adormecer: 
nada a declarar.
O rasgão vermelho de uma papoila; 
um quadrado de céu fugido; 
a palavra redonda que distrai o silêncio; 
a interjeição que se solta dos olhos; 
sombra de vida numa esquina acesa.
Tudo coisas que não vi. 



Jonas, 1.1.1.




Naqueles dias, secaram os mares. E as areias do vasto deserto que lhes sucedeu revelaram-se habitadas por milhares de garrafas de muitas cores e formas, a brilharem sob o sol. Imenso, era o cemitério de mensagens perdidas que a esperança dos homens havia lançado ao mar. 

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Repesa

A beleza da palavra está na sua coerência:
Todo o arrependimento é uma forma de resgate. É o retorno ao todo da parte evadida. 
Disse-lhe não estar repesa do amor. 
Mas era mentira. 

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Comunicações intergalácticas

Entretanto, a terra girou e girou e girou. Deste posto de observação, nuvenzinha de tédio onde armei a cama, vi-a dar voltas como se não fosse nada comigo. Às vezes sinto-a como uma pequena esfera, tão longínqua e insignificante como o berlinde colorido com que as crianças brincavam nos tempos em que havia crianças. Como se demasiado pequena para que pudéssemos todos caber nela. É por isso, acho, que me transladei para esta nuvem. Foi a claustrofobia dos telejornais; o tom de queixume quotidiano; o manto das mentiras com que se cobrem os joelhos; a enjoativa nostalgia do pôr-do-sol; as faturas eletrónicas a ocuparem o espaço virtual das cartas de amor; os zumbidos dos eletrodomésticos a arrefecerem-me os sonhos; o esparguete com bife napolitano no prato do desconhecido. Tudo coisas que compreendes bem demais já que começaste a odiá-las muito antes de eu chegar.
Então mudei-me para esta nuvenzinha de tédio e fiquei a ver a terra girar na transparência da página de um poema. A poesia é uma armadura. Não sei como nunca o percebeste. Talvez seja indispensável ser-se fútil e dar a importância devida aos outfits. Sempre soube que a minha metade burguesa haveria de me salvar a vida. 
Mas entretanto, dizia eu, a terra girou e girou e girou. Passou-se outro ano desde a última vez em que soprámos por ti as velas do aniversário e ficámos sentados em frente a um bolo demasiado duro para ser ingerido. 
Aqui, da minha nuvem, enquanto ensaio as notas dos parabéns a você e decido que é o nascimento e não a vida aquilo que justifica a comemoração, ocorre-me que pode bem dar-se o caso de estar mais morta do que tu. 
Porém, com muito melhor outfit. Como sempre. 

Autobiografia

Não preciso mas tu sabes como eu sou
Encaminho-me pouco divirto-me assim nas copas
Das árvores soprando pensamentos para o mundo que há de noite.
As pessoas quando acordam são outras, já sabias,
Essa névoa contemporânea do medo miudinho
Que perdemos nas cidades e nos corpos, tu entraste
Antes de mim nos jogos, o enxofre da música e o
Lago do feitiço, inocente homem breve que sonha
Tu bem sabes.
Depois aluguei a bruxa por uma vasta noite.
E a minha vida mudou, a noite cresceu,
A vertigem ardeu-me nos braços até a sangria
Do tédio quando para sempre julguei que te perdia.
Na luta perdi um ou dois braços,
Mais do que o que tinha. Mas esta memória é um palácio,
São corais no pensamento. Jardins e fantasmas,
O gume nas mãos sorvendo, criança estratosférica
E profunda: sem braços e agora sem mais nada.
Não me percebeste, enchi-me de fúria.
É uma arte, queria eu dizer, matar sem retrocesso e
Atraso – ah aqueles braços para apoiar as mãos - ,
Ceifando. Saturno.e.o.vento.na.proa.erguendo.
O: navio:no:mar:parado:parado: completamente.
Parado.como dizer? Não dizer, eu sou.uma vida
Medonha e múltipla. E agora descanso
Deitado nestas mãos que mexem
Sem apoio, sabes, nascendo dos teus olhos
P’la manhã.

Rui Costa

domingo, 7 de fevereiro de 2016

Analgésicos


Procuro a maravilha nas coisas pela simples razão de que preciso dela. Preciso das palavras azuis dos poetas. Do rasto da prata no desenlace das ondas. Das asas das gaivotas desenhadas no céu. Do infinito caleidoscópio das estrelas. Da emoção combinada na equação da música. Dos rostos de Goya, dos Eros de Caravaggio, das mulheres da Paula Rego, do ouro de klimt. 
E todas essas coisas são insuficientes para dissolver a imperfeição de uma tarde antiga. 

Andhriminir

Não é pouca a inveja que me despertam as loas que uma parte da blogosfera, nos últimos dias, tem tecido às almas que lhe cuidam da alimentação do corpo. 
A mim calhou-me em má sorte, Andrhiminir, o cozinheiro Pirata, sádico Viking de nome impronunciável e irrepetível na sua forma.
Andrhiminir foi a mais trágica contratação deste navio. Bem sei que deveria ter previsto a situação quando entre monossilábicos humrrfff me fez saber que estava interessado no emprego pela oportunidade de torturar pessoas. Mas a verdade é que os seus dois metros de selvagem e o facto de se fazer acompanhar por um omnipresente arpão daqueles de caçar baleias, fizeram-me lembrar o Queequeg, da Moby Dick de Melville, e pensei que se o louco capitão Ahab teve o seu selvagem canibal, eu bem poderia ter um sádico Viking. Ameniza a minha culpa a circunstância de o Viking ter falsificado os testes psicotécnicos, dando-os a fazer ao papagaio Polly que, apesar de igualmente estúpido, sempre tem alguma humanidade.
Andhriminir não cozinha os meus pratos preferidos; não me faz bolinhos; é indiferente ao meu estado de saúde; não se incomoda em decorar se o café é com ou sem açúcar e, não, nunca, absolutamente não e Deus me livre, entra no meu quarto para me despertar para o dia. 
O Viking mantém-nos a todos sob a chantagem dos seus humores, ora lá torrando um bife, ora servindo algas, ora apresentando um robalo cru grunhindo ser sushi, de acordo com um critério aleatório e imprevisível, em que as únicas constantes são o rancor e o humor psicopata. 
Apesar de já ter tentando de tudo para educá-lo, Andrhiminir é resiliente. Comprei-lhe uma Bimby, mandei vir os meus antigos livros de receitas da Vaqueiro, paguei-lhe um workshop de cozinha marítima, deixei-o, em desespero de causa, torturar um ou outro prisioneiro... A tudo isto respondeu com o mesmo amuo e a obstinada manutenção do status quo culinário da bizarria.
Mas o problema do cozinheiro não se fica pela cozinha. Nos seus tempos livres, que são aqueles que ele assim entende como tal, Andhriminir, dando mostras de odiar a companhia de todos menos a minha, entretém-se a torturar-me, plantando-se atrás de mim se estou a ler, ao meu lado se estou ao telefone e à minha frente se estou a andar, trespassando-me com aquele insistente olhar psicopata que, em conjunto com o arpão em que se apoia em jeito de bengala, povoa os meus mais tenebrosos pesadelos. 
Pese embora a péssima comida, o horrendo humor, os perdigotos que lança na minha direção, a mancha de ódio com que me cobre com o olhar, não me ocorreria desfazer-me do homem que me cuida da alimentação do corpo. Afinal, cada um tem os monstros que cria e eu convivo pacificamente com as leis do destino. O facto de ter a certeza que não hesitaria em usar o seu arpão contra mim se ousasse despedi-lo, naturalmente, não tem qualquer relação com este rasto de budismo de última hora. 

sábado, 6 de fevereiro de 2016

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Do poder da música

Após uma longa existência de profunda ineptidão musical, daquelas que justificam que se faça playback nos parabéns a você para não transtornar o aniversariante, consegui hoje reproduzir no piano qualquer coisa que, mesmo uma alma de má vontade, poderia identificar como sendo o refrão do Moon River. 
A lição é simples e merece ser partilhada:  Não há coisa alguma que, com o necessário esforço, esteja vedada à infinita capacidade de aprendizagem de qualquer ser humano. 

Post scriptum: É certo que o cérebro tem os seus caprichos e resistências. Falhei na tentativa de aprender a tocar "Atirei o pau ao gato".

Resgates

Não sei se foi do vento a ameaçar as janelas rasgadas nas paredes da sala grande; da nuvem de cor púrpura no topo da árvore onde mora a cegonha; do resto de mar por trás da cabeça dos outros ocupantes da sala; de um familiar gesto de mãos, como quem desenha, numa pauta suspensa no ar, a imaginária nota musical.
Não sei se a fuga durou horas, minutos ou segundos. 
Recuperei-me já para lá do horizonte, onde se interrompe o mar. Arranquei a fronte desse espaço que fica entre entre a clavícula e o teu pescoço, alívio de uma alma insone. Ainda encontrei uns segundos de verdade no fundo do teu olhar. 
Mas depois restituí-me à sala. O vento a querer entrar pelas janelas. As pessoas de costas para a nuvem púrpura. Nenhum gesto que seja teu. Olhares fixados no vazio da minha expressão.
Devolvi-me onde não pertenço.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Da Paris Review 4

Então o que é que os romances fazem?

Ao leitor comum? Os romances dão ao leitor algo para ler. No máximo, os escritores mudam a maneira como os leitores lêem. Essa parece-me a única expectativa realista. Também me parece mais do que suficiente. Ler romances é um prazer profundo e singular, uma actividade humana absorvente e misteriosa que não exige nem mais nem menos justificado moral ou política do que o sexo.

Mas não há outras repercussões? 

Perguntou-me se achava que a minha ficção tinha mudado alguma coisa na cultura e a resposta é não. Claro, houve algum escândalo, mas as pessoas escandalizam-se a toda a hora; é um modo de vida para elas. Não significa nada. Se me pergunta se quero que a minha ficção mude alguma coisa na cultura, a resposta continua a ser não. O que quero é possuir os meus leitores enquanto eles lêem um livro meu - e, se conseguir, possuí-los de maneiras que os outros escritores não conseguem. Depois, deixá-los regressar, tal como eram, a um mundo onde todos os outros tentam mudá-los, persuadi-los, tentá-los e controlá-los.
(...)

Philip Roth, in Entrevistas da Paris Review 2, Tinta da China, pg. 201.