segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Ocasos

Lembrei-me, hoje, teu do pôr-do-sol. 
Ficava numa longa reta asfaltada que terminava no mar. 
Os raios cansados salpicavam de ouro partículas de pó na berma da estrada que, a cada ocaso, era uma pista de descolagem para a eternidade. 
Todas as pessoas tinham o seu pôr-do-sol. Há alguma nostalgia no facto de saber que não voltarei a cruzar-me com tão bizarro sentido de propriedade. 
O meu sol punha-se a dois ou três quilómetros do teu spot de ocasos. 
Afogava-se diretamente no azul do mar, parecendo mergulhar a partir da minha varanda. 
Ainda é assim que se põe o meu sol. As varandas sobre o mar são iguais em qualquer parte do mundo. 
Ocorreu-me hoje que, apesar do tanto que partilhámos, raras foram as vezes em que conseguimos viver o mesmo ocaso.


Mar de Tédio

Já sem o excesso de passado que alimenta a depressão e também já sem o excesso de futuro que é combustível da ansiedade.
De presente, restou isto. O tédio antecedido pelo tédio e seguido da promessa de mais tédio. A tranquilidade de boiar de costas num imenso e infinito mar de tédio. 

Datas

Certas comemorações servem apenas o propósito de realçar a indigna presença que se faz sentir por via da total ausência.

Ausências

Na categoria de exercícios estúpidos de que se ocupam os seres humanos, o mais estúpido de todos será, porventura, o de justificar as omissões dos outros. Uma omissão, falha, ausência, basta-se apenas com o seu significado evidente. Na sombra de um silêncio profundo raríssimas serão as vezes em que se esconde um resto de comunicação.

A Piada Infinita

Demorei tanto tempo a ler A Piada Infinita de David Foster Wallace que não seria despropositado dividir a vida entre API e DPI.
Talvez até volte ao princípio do livro apenas para corrigir os erros da primeira fase da minha existência.

domingo, 30 de agosto de 2015

Sueste

Veio o Sirocco encerrar o verão. Os panos dos toldos ainda se debatem na praia, fazendo chiar lamentos que se elevam e se perdem no areal. Serão engolidos pelo mar que tudo leva consigo quando o vento dos doidos e a lua cheia ousam sobrepor-se. Os restos do verão voam, já enlouquecidos, pelas ruas. Cinzeiros de plástico em forma de corneto, a sandália perdida da criança, a concha que o búzio abandonou, as penas roubadas às gaivotas, sacos de um minimercado local, o pequeno papel onde um homem anotou um número essencial, a metade da nota que dois desconhecidos dividiram num bar próximo, a página arrancada do livro que salvou uma vida.
São os objetos os primeiros a render-se a um destino que também é dos homens. 
Logo à noite estaremos uma outra vez todos loucos. 
Sabem-no aqueles que apressadamente tentam escapar nas suas carrinhas familiares carregadas até ao tejadilho. 
Sabemo-lo nós que não temos para onde ir. 
Esta noite, mulheres descalças e de camisa de dormir, dançarão a sua loucura desgrenhada entre as ondas da praia.
Homens desnudos miarão nos beirais dos telhados numa luta animal por um amor que não veio. 
Amanhã acordaremos todos no outono. Areia entre os dentes. Os picos dos cactos nos joelhos. Feridas salgadas. 

Últimas coisas


E as férias grandes chegaram ao fim daquela forma que é marca indelével de todos os finais decentes: anestesiadamente e sem culpas.

sábado, 29 de agosto de 2015

Sábado à Noite

Conto até três 
Se quiser ser
Feliz

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Just Words

Não é que não goste de palavras. Adoro-as ao extremo de conseguir viver no espaço que fica entre dois bons versos. Mas sei-as indignas de maior fé do que aquela que se deposita nos quadros pendurados nas paredes. Um conjunto de frases pode conter menos verdade que o desenho de um unicórnio branco.
Os saberes que de bom grado dispensaríamos, paradoxalmente, são aqueles que nos são mais úteis.

Sobre o último mês e meio

A preguiça embalada no imenso azul do mar. 

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Diário de Bordo

Um erro nas coordenadas do GPS em segunda mão que comprei para instalar no navio Pirata, fez com que a minha tripulação se desviasse da rota do Bósforo, onde os deveria encontrar após a expedição de Bizâncio, e tenha ancorado ali para os lados da marina de Lagos. Como é evidente, estes bravos Piratas são-me fiéis e foi um erro verdadeiro e não uma vil desculpa para se fazerem transportar para as praias algarvias, cedendo ao não menos vil impulso burguês de passarem os últimos dias de verão nas filas de estacionamento para a praia e as últimas noites nas filas de estabelecimentos noturnos que prometem festas brancas. 
Hoje, pela hora de almoço, depois de escalar as pilhas de corpos de banhistas que se acumulam na praia, consegui finalmente alugar uma daquelas gaivotas com escorregas e, fazendo transportar o espólio da expedição Bizantina, alcançar o navio.
Sem surpresa nenhuma, constato que a anarquia continua a ser a melhor forma de governo, pelo menos, entre gente que se rege pelos códigos morais do crime. Encontrei o navio e a respetiva tripulação razoavelmente inteiros e exceção feita ao estranho caso do GPS avariado parece que na minha ausência não sucederam bizarrias de maior. 
A minha tripulação recebeu-me com um faustoso almoço de boas vindas (catering roubado a uma restaurante local com nome de praia) e quarenta lugares a mais na mesa. Tive de lhes explicar que os quarenta ladrões morreram todos cobardemente antes do final do conto, razão pela qual me foi impossível contratá-los. (A morte cobarde e não a morte propriamente dita, bem entendido, que essa nunca nos impediu de contratar ninguém e que o diga Álvaro de Campos, logo à noite quando estiver em condições de falar). 
Depois da distribuição daqueles olhos turcos com íman para colar no frigorífico que lhes trouxe como recuerdos, apresentaram-me o plano que referendaram na minha ausência e que, em síntese simplificadora, passa por permanecermos nas proximidades da marina de Lagos, passando os últimos dias do verão nas filas de estacionamento para as praias e as últimas noites nas filas dos estabelecimentos noturnos que prometem festas brancas. 

195.ª Noite

Na 195.ª das Mil e Uma Noites, um não despiciendo princípio de verosimilhança: constanto que a intensidade da correspondência entre Xemsilnihar, a favorita do Califa e Ali Ben Becar, o Príncipe da Pérsia, reduz-se até ao nível do simples telegrama com o progresso da sua relação amorosa. 
No final, é claro, ambos morrem de amor. Mas ela morre primeiro. 

Das coisas mesmo muito importantes

Ao trigésimo quinto dia de férias consegui, finalmente, aquele nível de demissão orgânica essencial a uma pequena sesta. 
Não durou mais do que uma hora e bem sei que não parece um feito extraordinário. Pelo menos, aos olhos dos não insones. 
É a minha maior vitória pessoal desde que, sensivelmente há um ano atrás, consegui adormecer no sofá num bonito final de tarde de agosto. 



quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Campanha

Queridas pessoas:
O verão acabou. 
O calor que ainda pensam que sentem é resultado do vosso estado de negação. 
Toda a gente sabe que o verão termina no dia 15 de agosto. A partir daí as praias devem ficar reservadas às marés vivas, às moscas e aos nativos.
Por favor, retornem às vossas casas e ao que quer que seja que faziam antes de se instalarem aqui. 
A vossa vida espera-vos. Não a abandonem.

Lua Azul

Passou pela nossa ausência a segunda lua azul. Não sei que blues se ouviram sob a lua que não vi. Senti-a na clausura de uma cela construída com todas as matérias primas da razão. Senti-a como os cegos sentem as cores: Numa névoa feita de um branco lento, denso e eterno. 

domingo, 16 de agosto de 2015

Segredos

Sabiam-no as gaivotas adormecidas na varanda voltada a poente onde te deram à boca o sabor da alegria pura.
Sabiam-no dois girassóis que, sem que se saiba como, escolheram nascer no jardim de rosas que estendeste até ao mar.
Sabiam-no os fantasmas dos teus antepassados que connosco partilharam o riso e as estrelas.
Agora, que lhes estendeste esse destino exclusivo dos homens que é o esquecimento, o nosso segredo morrerá  salvo. 

Dona Armanda

Tem talvez cinquenta, tem talvez sessenta. É possível nascer-se já sem idade. Essa, aliás, costuma ser uma das muitas declinações da pobreza. Arrasta a cesta pela praia onde a esta hora da manhã e da maré ainda é possível descobrir-se alguma areia. O pregão é um dos mais incomodativos e é a sua imagem de marca. Tem orgulho nele. Percebe-se pela forma como o grita. É o mesmo desde que aqui cheguei. As sandálias vão mudando. Suponho que no final do mês as tiras de plástico cedam ao esforço diário de palmilhar a praia sob o peso da cesta. Ela não cede ao esforço. Não pode deixar-se partir. Se lhe perguntassem, tenho a certeza, diria que a coragem é a virtude da falta de alternativa. Diria-o de outra forma. Com um sorriso que eu jamais seria capaz de imitar. Aqui deitada na cama, observo-a erguer a cesta, fazer uma festa na cabeça do miúdo que lhe dá a moeda e afastar-se, parecendo genuinamente feliz com ou apesar do seu pregão. Das costas vergadas ao peso da cesta. Do sol tórrido nos cabelos que este ano estão mais brancos.
A felicidade é o mais indesvendável dos mistérios dos seres humanos.

sábado, 15 de agosto de 2015

Desmorte

Procurámos os indícios nas frases dos primeiros, como se Herodoto, Esopo ou Homero contivessem o mistério da primeira rosa. 
Depois buscámos a explicação nos clássicos e diante do seu desprezivo silêncio exigimo-la aos românticos. 
Mas, nesse altar, apenas encontrámos o desespero que tentámos aliviar com os poetas. Os versos são fraco paliativo da febre quando a pele não cabe numa metáfora.
Os contemporâneos remeteram-nos para Chuang Tzu e este para um intolerável palácio de acasos. 
Inconformados, batemos à porta da ciência onde nos oferecemos para todos os programas experimentais ainda não inventados pelo homem e já condenados pelos deuses. 
Percorremos o mundo sem que em nenhum deserto ou oásis nos hajam sabido libertar da peste azul.
Na minha desmorte, resta-me, pois, concluir que é tudo uma grande estupidez. 


O dilema dos homens

Na ficção assim como na vida:

"- Que quarto mais sinistro! - disse a rapariga, avançando timidamente. - que porta tão pesada! - Tocou-lhe ao falar e fechou-se de repente.
- Meu Deus! - disse o homem. - Parece-me que não tem trinco. Estamos os dois fechados...
- Os dois, não; apenas um! - disse a rapariga, e atravessou a porta maciça e desapareceu."

I.A. Ireland, traduzido para o espanhol por Borges, de quem consta que o primeiro pode ser mero pseudónimo.

O dilema de Rimbaud

"Procurei inventar novas flores, novos astros, novas carnes, novas línguas. Julguei adquirir poderes sobrenaturais... Agora tenho de enterrar a minha imaginação e as minhas recordações. (...)  Devolveram-me à terra. A mim, que me sonhei mago ou anjo..."
Arthur Rimbaud 

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Agosto

Por agora, aceitemos agosto. 
Os dias que findam ali na linha do horizonte. Depois das famílias abandonarem o areal e irem fazer aquilo que fazem as famílias em férias. Os esquadrões de gaivotas que fecham as praias. A primeira estrela de cada uma das noites. Os pés entregues à mansidão de uma onda. 
A fronteira sonâmbula de um mar sem lado de lá. 
Como quem acorda de uma sesta atribulada por um breve sonho que deve ter sido mau e se surpreende pelo anacrónico travo amargo na boca. 
Por agora, aceitemos essa doce panacéia que é agosto.

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Cru

Estudámos a receita muitas vezes. Preparámos individualmente cada um dos ingredientes que escolhemos puros, frescos, verdadeiros. Seguimos todos os passos, tempos de repouso, tempos de cozedura, temperatura do forno...
Tínhamos um mestrado em temperos. 
Prometeram-nos que a vida era tão simples como seguir uma receita difícil. 
Muitos anos depois, sentadas à mesa, prato intragável na frente, tornou-se evidente que fizemos tudo mal. 

domingo, 9 de agosto de 2015

Oráculos reversos

Deu-lhe razão, o tempo. 
Afundaram-se-lhe as linhas do rosto. Desvaneceram-se os contornos da boca. O cabelo rareia e o olhar embaciou-se. A pose perdeu a altivez. A expressão é a de uma desorientada senilidade precoce. 
Afigura-se-me evidente que uma bruxa apropriou-se da ampulheta estagnada e pelo vidro correm agora velozes as purpurinas lunares. 
Dizem-me que fui eu a autora do feitiço da cruel reposição do tempo. Não é verdade. Sou apenas culpada de o ter feito parar. E talvez de não ter conseguido suster o peso dos ponteiros de todo o universo. 
- Mas é apenas um velho. Penso para mim própria. 
Percebo que as minhas memórias e a sua representação material se degradaram em tão perfeita proporcionalidade que temo que em breve se extingam todos. 
E sei, sei agora que o tempo deu-lhe a mais terrível das razões. 

Bizâncio-Lisboa


Quando a impressão é profunda o cérebro demora a deixar que se desvaneça. Voltada para este rio que já é o Tejo, espero ainda encontrar um resto do mar de Marmara. 
Ali, depois daquela esquina, um outro bazar. Só que neste transacionam-se almas. 
Pergunto por uma especiaria azul. Tento o meu melhor sotaque. Ninguém parece compreender.

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Despertares

Uma manhã acordei incapaz de reconhecer a imagem que o reflexo no espelho me devolveu. 
Havia um rio mas não era o nosso.
Soube então que deixaste de me sonhar.