Respondo-lhe que, obviamente, apagarei a luz e fecharei a porta.
terça-feira, 30 de junho de 2015
O último a sair
Pergunta-me a lua, desviando por breves instantes olhar do cimo da montanha, o que farei agora, que a música se diluiu no silêncio.
Vem no Melville II
Mas em virtude da sua própria intensidade, a sua inconsciência foi de curta duração. Assim às vezes nos grandes corações, durante um momento, a soma dos grandes sofrimentos esparsos na vida dos homens mais fracos se condensa e se acumula numa única grande dor. E se bem que então esse sofrimento seja leve em si mesmo, se os deuses assim o decretaram, um século inteiro de dor intensa é experimentado num único momento, pois as naturezas nobres encerram na sua alma o conjunto de todas as almas inferiores.
Moby Dick, Melville, Relógio D' água
Vem no Melville I
Considerai a malícia do mar e como as mais temíveis criaturas deslizam sob as águas, invisíveis para quase todos e traiçoeiramente ocultas sob as mais belas tonalidades do azul. Considerai o brilho e a diabólica beleza de muitas das suas mais impiedosas tribos e como é bela e delicada a forma de muitas espécies de tubarões. Considerai uma vez mais o canibalismo universal do mar cujas criaturas se entredevoram, fazendo umas às outras guerra sem quartel desde que o mundo é mundo.
Considerai tudo isso e depois voltai os vossos olhos para esta terra, verde suave e sólida; não achais que existe uma bizarra analogia com algo de vós próprios? Porque, tal como o pavoroso oceano rodeia na sua totalidade a terra verdejante, assim na alma do homem se encontra uma Taiti cheia de paz e alegria, mas rodeada por todos os horrores pressentidos da vida. Que Deus vos proteja. Não vos afasteis dessa ilha segura, se não nunca mais lograreis voltar à terra firme.
Moby Dick, Melville, Relógio D' água.
Xadrez
Numa sala mergulhada na penumbra e indiferente às oscilações dos dias, estações e anos, jogaram um xadrez eterno. Sobre a mesa de mármore já gasta, em gestos lentos mas aparentemente decididos, foram sacrificando rainhas e bispos. Conheciam de cor os movimentos um do outro e há muito que nenhum jogava o seu jogo. Bastava-lhes impedir que o adversário avançasse sobre o tabuleiro. Ambos sabiam que a vitória era impossível porque o jogo concretizava-se na eternidade.
Cada um ganhava e perdia na exata medida em que mantinha o outro na alienação de uma sala mergulhada na penumbra e indiferente às oscilações dos dias, estações e anos.
segunda-feira, 29 de junho de 2015
O poder que importa
O privilégio dos tecelões da arte é o poder supremo de induzirem emoções. Assim como Hana Moravá, que um dia, não sei se de manhã ou de tarde, se triste ou alegre, tirou esta fotografia para que entre milhões de outras surgisse diante dos olhos de alguém que nunca conhecerá e conseguisse produzir esse inexplicável milagre da emoção.
domingo, 28 de junho de 2015
Um pesadelo
À noite, na penumbra de um quarto que apenas posso supor, os demónios da noite sopravam-lhe aos ouvidos o meu nome. E ele sonhou amar-me durante muitos anos.
Angustiómetros
Esta estância balnear onde existo reabriu e encheu-se. A indústria inventou nos últimos anos produtos eficazes contra as melgas. Encontrei o vestido comprido que precisava para as noites de verão. Consegui reunir os quatro volumes das obras completas de Borges em língua portuguesa. Os sapatos desportivos que comprei afinal servem para andar. Confirmaram-me a reserva no restaurante de Istambul. Nenhuma das minhas pessoas parece miseravelmente infeliz. Eliminei a marca branca do biquini que me atormentava desde a semana passada. Dentro de casa a temperatura é aceitável. Este ano não mudarei de terra. Voltei a deixar de ver televisão e de ler notícias. Faltam 15 dias para não fazer rigorosamente nada durante 45. Afinal não estou doente. Ninguém que me interesse está zangado comigo.
O angustiómetro que tenho instalado dentro de mim atingiu mínimos históricos.
sexta-feira, 26 de junho de 2015
Penélope
Vim de longe, dos dias em que os homens ainda não tinham sido expulsos da mesa dos deuses e as sortes se compravam no altar do sacrifício ao preço de duas vestais por cada batalha ganha. Atravessei muitas noites até chegar a esta praia. Sem outra rosa na bússola que não o seu norte.
Mas junto a este mar, sonhou-me o destino de Penélope.
Agora sobra-me apenas um resto de fio no novelo; os passos alcatifados pela extensão da tecelagem com que fui iludindo os dias; a vaga memória de uma outra noite de junho.
E o Odisseu (que não sonhou o mesmo sonho) por mais que lho pedisse, não poderia nunca reconhecer a oliveira sobre a qual, do outro lado do tempo, fundou um dia o nosso lar.
quinta-feira, 25 de junho de 2015
Todos somos Norah
O tigre
Ia e vinha, delicado e fatal, carregado de infinita energia, do outro lado dos firmes barrotes, e todos o olhávamos. Era o tigre dessa manhã, em Palermo, e o tigre do Oriente e o tigre de Blake e de Hugo e Shere Khan, e os tigres que existiram é que existirão e igualmente o tigre arquétipo, já que o indivíduo, no seu caso, é toda a espécie. Pensamos que era sanguinário e belo. Norah, uma menina, disse: "Está feito para o amor."
quarta-feira, 24 de junho de 2015
Diário de bordo
Andhriminir, o cozinheiro pirata, trouxe-me a carta juntamente com a omelete de espargos. Levantei o sobrolho direito para que percebesse que tomei nota de duas manchas de gordura que reproduziam na perfeição as impressões digitais do Viking psicopata. Ignorou-me e ficou ali especado a respirar por cima do meu ombro, à espera que abrisse o envelope.
O papel era de um azul institucional, irrepreensível, escrito com tinta preta provavelmente aprovada por duas ou três diretivas comunitárias e numa letra quase demasiado perfeita para ser de origem humana. Um leve a aroma a Hermès reavivou-me a memória das células da medula. Instintivamente, endireitei as costas; puxei a saia para baixo numa tentativa inútil de tapar os joelhos; repreendi-me os sapatos sem saltos; tomei consciência do cabelo desgrenhado e da manicure imperfeita; constatei que já não me lembro do nome das capitais de todos os países da costa africana e envergonhei-me pelo facto de os talheres pousados na mesa nem sequer serem de prata.
O remetente escreveu no local do destinatário o meu nome completo, trabalho a que só se dariam os credores, o fisco, a justiça e o meu ex-homem. E destes, é certo e sabido que só o último teria eficiência e meios para me localizar em alto mar, algures entre as águas de Espanha e de França.
Segurei a carta com a ponta dos dedos num gesto que um medíocre psiquiatra poderia identificar como o receio de poluir o ambiente da proveniência e outro medíocre psiquiatra seria capaz de garantir representar a relutância da auto-contaminação.
Tomei-lhe o peso na palma da mão. É o gesto atávico correspondente à ancestral consulta dos oráculos.
Mas depois, ainda com as costas direitas e com a respiração de Andrhirmnir a oxidar-me o colar de prata, os músculos do meu braço conspiraram num espasmo involuntário que atirou com o envelope borda fora do navio.
Cruzei os olhos com a expressão amuada do cozinheiro e Viking e enquanto devorava a omelete com as mãos, ouvi-me dizer com a boca cheia:
- ohhh ... caiu ao mar.
terça-feira, 23 de junho de 2015
Salas de Espera
Esta sala é um espaço de não existência. A televisão ao fundo vai-nos lembrando que o mundo existe, mas a lembrança é uma sombra triste que alastra ao ritmo das vozes entusiasmadas de um daqueles programas da manhã. Ficaríamos todos aliviados se a desligassem.
Há uma janela para a rua através da qual se vê uma esplanada em hora de ponta de cafés e pasteis de nata servidos a um euro e quarenta e cinco cêntimos. Uma mulher espreita pela janela e observa-se-lhe uma expressão invejosa dos clientes da esplanada, lá fora, sentados numa existência. Reparo que tem uns sapatos da marca de outros que comprei e a expressão in her shoes atinge-me num ponto desconhecido entre o estômago e as costelas.
Perdi a conta ao tempo que gastei aqui sentada. Dizem-me que apenas passaram dez minutos, mas a minha clepsidra avariada garante-me que foram dez anos.
Tenho um euro e quarenta e cinco cêntimos na carteira. Não os consigo gastar sentada nesta sala.
segunda-feira, 22 de junho de 2015
Assim como uma espécie de pequeno gigante a flutuar no cosmo
O maior terror que encerra a perda é a possibilidade, ainda que meramente abstrata, de conseguirmos sobreviver ao desaparecimento daquela pessoa concreta. A angústia da perda, mais do que pelo espaço do vazio deixado ao nosso lado, justifica-se pelo pavor do momento em que esse espaço desaparece em virtude de um fenómeno natural de expansão.
Preenchi todos os espaços vazios em meu redor, não através do sistema clássico da substituição, mas por via da pura e simples expansão.
Só ainda não consegui decidir se é coisa boa ou má.
quinta-feira, 18 de junho de 2015
Space Dementia
"You will make us want to die
I'd cut your name in my heart
Will destroy this world for you
I Know you want me to
feel your pain"
quarta-feira, 17 de junho de 2015
Culinária sentimental
Primeiro comete-se um erro. Convém escolher um erro de grande qualidade, dos crassos, mesmo.
Depois mistura-se-lhe uma generosa quantidade de culpa e bate-se até formar uma massa de consistência uniforme.
De seguida, num recipiente separado, recria-se a causa de justificação do erro para atenuar a culpa. Junta-se tudo e acrescenta-se uma pitada de falta de imaginação.
Leva-se ao forno e obtém-se um grande amor.
Deve servir-se gelado.
domingo, 14 de junho de 2015
Mar chão
Enquanto a música durou
desvaneceram-se o mundo,
esta praia, as paredes de casa e as coisas.
Ficámos pendurados numa das antenas do tempo,
sintonizados num dia tão antigo que se imagens
tivessem sido registadas já a celulose as teria roído.
Enquanto a música durou
calaram-se as vozes,
estes pássaros, os carros e as harpias.
Ficámos submersos no silêncio do fundo do mar,
onde uma baleia que já inexiste ainda trilhava
a corrente que nos abraçou os ombros.
Enquanto a música durou
esquecemos mil dias de esquecimento,
outros tantos rostos, o dobro das mãos e
ainda o mapa inacabado da reconquista das fronteiras.
O presente fez-se o pretérito futuro
das certezas de eternidade.
Perdida no tempo
primeiro centésimo de segundo,
a contar do último acorde.
Terror noturno
E era o terror do esquecimento que o fazia a ele ocupar-lhe a parte branca da mente, quando ela dormia.
Sonhei contigo.
Escreverei sobre o último livro que recebi e de como viajou tantos quilómetros e de como será para sempre o meu último livro mesmo que ainda possa haver uma biblioteca inteira. Escolhe-se o último livro.
Escreverei sobre como se pode ultrapassar o tempo, vencendo-o, mantendo através dele a mesma proximidade com as mesmas pessoas e de como os amigos são as mais fidedignas testemunhas da nossa vida pelo simples facto de a fantasiarem muito pouco. Escolhem-se as testemunhas de nós.
Escreverei sobre o potencial assassino da música e a desonra cobarde que se resguarda na insídia da escolha de tão inocente arma, quando toda a gente sabe que as pessoas de bem, para matar, usam uma única e certeira bala. Escolhem-se as armas com que se morre.
Nada direi sobre a assombração que me assalta os sonhos.
Amar
Amar é mais ou menos o mesmo do que engolir uma granada e entregar o detonador nas mãos de alguém que não se conhece de lugar nenhum.
Pode matar-nos uma palavra; uma música; um nome; um olhar. Pode matar-nos, por absurdo, o absoluto nada.
Não sei como ainda há pessoas que entusiasticamente se disponibilizam para a prática de desportos em que se morre por tudo e por nada.
quarta-feira, 10 de junho de 2015
Camões
A Luís de Camões
Sem cólera nem mágoa arromba o tempo
As heróicas espadas. Pobre e triste,
À nostálgica pátria regrediste
Pra com ela morrer nesse momento,
O capitão, no mágico deserto.
Tinha-se a flor de Portugal perdido
E o áspero espanhol, antes vencido,
Ameaçava o seu costado aberto.
Quero saber se aquém da derradeira
Margem compreendeste humildemente
Que o império imperdido, o Ocidente
E o Oriente, o aço e a bandeira,
Perduraria (alheio a toda a humana
Mudança) em tua Eneida lusitana.
Jorge Luis Borges, Obras Completas II
terça-feira, 9 de junho de 2015
Coleção de céus
- o que é que ficou?
Ficaram os restos de uma limpeza desleixada. Os papéis das pastilhas elásticas que nascem no fundo das malas de estações passadas. Moedas de cêntimo nos bolsos das calças esquecidas. Catálogos de objetos que desistimos de necessitar. O pó das partículas de nicotina armazenadas. Foi o que encontrei em mim. Três ou quatro lembranças que não chegam para traçar uma memória:
O teu sorriso feliz de garoto de rua no dia em que me recebeste e o céu que era branco; A tua pele sob as ondas da praia vazia na manhã em que te ganhei e o céu que era de prata; o teu abraço nas ruínas desertas de uma casa promontório do mar na tarde em que julguei perder-te e o céu que era do azul da eternidade; a tua voz a elevar a lua num final de dia em que me ensinaste o mundo e o céu que era violeta; o teu olhar de desespero na noite em que à distância fiquei a ver-te procurar-me e o céu que era de todas as cores.
Ficou apenas o som das rodas do avião a separarem-se do asfalto no dia em que me perdeste e o céu que é o chão.
- ficou uma coleção de céus.
segunda-feira, 8 de junho de 2015
Tempestade de verão
Não há nenhuma poesia neste céu raso que nos pesa sobre os ossos e consome o ar. O cinzento solidificou-se dentro da medula e ficou trancado em nós. Ainda não não nos chegou aos olhos. Limita-se a circular por entre as veias. É preciso libertá-lo.
Há três dias que espero sentada na varanda. Espero um raio que desencadeie a catarse e desfaça o céu. Espero a chuva. Espero o alívio que fica nas pedras depois da hecatombe. Espero a morte ou a vida. O que quer que chegue primeiro à mesa dos despojos da tempestade que se atrasa.
Vi este céu noutra dimensão da mesma eternidade a muitos quilómetros de distância. Sei que ao quarto dia os gritos das gaivotas nos rasgam as gargantas.
Estendo os pés descalços e espero que a chuva os venha lavar.
domingo, 7 de junho de 2015
Protesto Formal
Querido Xilre,
Sendo a Rosa, de Rodrigo Leão, uma das minhas músicas preferidas, com uma letra que, apesar de não ser de Rodrigo Leão considero ser de uma simplicidade magnífica, venho por este meio exercer o meu protesto formal contra essa sua última excentricidade.
Ouça-se isto:
Agora leia-se isto:
"O casamento é um lugar comum. Tentei habitá-lo como se habita uma casa: no começo com aventura, com adrenalina, com a necessidade de fazer de cada espaço um espaço de valer a pena: um espaço com prazer dentro. Mas depois a casa perde espaço: há cada vez mais móveis, há cada vez mais espaço ocupado e cada vez menos espaço por ocupar. Mas depois a casa perde-se espaço. E o espaço que sobra é um espaço pequeno, diminuto, asfixiante. E o espaço ocupado é o que já foi, o que não consegues deixar de ver nele: o que um dia foi espaço livre e que agora é apenas um espaço ocupado. Só o espaço livre por conquistar me ocupa verdadeiramente. É a tarefa de ocupar, de ir aos poucos ocupando, conquistando, colonizando, fazendo meu o que me fascina. Não é, nunca é, o próprio espaço ocupado, e a forma como é ocupado, que me faz querer ocupá-lo. O caminho é o único fim possível. O meio é o único meio possível."
Excerto do livro Ou é Tudo Ou Não Vale Nada, de Pedro Chagas Freitas, retirado do site oficial do próprio.
Não é preciso ocupar mais espaço, pois não?
P.s. Não deixe que o número de visualizações no youtube ou as vendas da música o confundam quanto ao conceito de cultura de massas. A explicação é simples: o primeiro é um artista mundial, com consumidores espalhados pelo globo. O segundo, nem as perspetivas mais pessimistas sobre a evolução dos gostos literários permitem acreditar que algum dia o venha a ser.
Ps1 Já nem falo sobre isso de se ocupar uma casa com adrenalina (?) mas o que é que quer dizer a última frase?
sábado, 6 de junho de 2015
E pode-te matar uma guitarra
1964
I
Já não partilharás a clara lua
Nem os lentos jardins. Já não há uma
Lua que não reflicta algum passado,
Cristal de solidão, sol de agonias.
Adeus às mútuas mãos, adeus às fontes
Cercadas pelo amor. Hoje só contas
Com a memória nos desertos dias.
Ninguém perde (repetes futilmente)
Senão o que não tem e não vai tendo
Nunca; porém, não basta ser valente
Para a arte aprender do esquecimento.
Um símbolo, uma rosa é o que te agarram
E pode-te matar uma guitarra.
II
(...)
Jorge Luis Borges, Obras Completas, II
Feira
Outra vantagem de ser Pirata e viver neste navio é a absoluta isenção de culpas por não ir à feira do livro e assim perder essa maravilhosa oportunidade de, ao som dos anúncios das sessões de autógrafos dos escritores, ser atropelada por carrinhos de bebé e por crianças a correrem com cornetos de chocolate na mão que invariavelmente se sentem atraídos pelos meus vestidos.
Não sei quando é que a feira do livro deixou de ser o velho e feliz encontro de nerds caçadores de bizarrias e passou a ser aquilo que agora se chama de evento familiar e que, na realidade, é um mau nome de código para local onde demasiadas pessoas vão fazer nada em conjunto com desconhecidos.
Considerando que, com exceção de livros, não há lá nada para ver, quem passar no Parque Eduardo VII num sábado à tarde de inícios de junho jamais poderá acreditar nos níveis de iliteracia nacionais.
quarta-feira, 3 de junho de 2015
Vida tão estranha
Diz-me o telefone que não foi possível descarregar vida tão estranha.
Parece-me um evidente erro do sistema. Se há coisa que tenho a certeza é que a vida tão estranha há muito que está instalada.
E quando começo a admitir a possibilidade de ter trazido o telefone de outra pessoa, percebo, com aquele alívio pela reposição da coerência cósmica, que afinal está apenas a referir-se a uma compra do iTunes.
Anexo ao post anterior
ENFEITAR O PÓ
Se deus quiser, amanhã morrerás
trespassado por olhos afiados de mortal quebranto
em paz com todos os inimigos
na cruz cravado com cavilhas ferrugentas
e algumas histórias para contar entre amigos
cujos lamentos já escutamos em surdina
tinha uma mãe enraivecida que lhe augurava futuros
tinha um pai com quatro pernas de ateísmo
e ia todos os domingos à missa
para ficar sentado na última fila a contar bocejos
de soslaio
pela calada
pendendo para dentro do corpo
à guisa de sufoco sustenido
e rezava diariamente orações de são francisco
enquanto caminhava descalço sobre a erva
e distraidamente pisava a bosta
do cão que acabara de passear
e construções de areia onde pudesse desfazer-se da própria cabeça
tão cheia
tão inutilmente cheia
de nomes sem fruto
de termos sem cheiro
de ideias sem fito
penduradas ao pescoço
um ornamento de família
herança penhorável para execução de factos
era o tipo de pessoa que gostamos de ter em casa
para enfeitar o pó
trespassado por olhos afiados de mortal quebranto
em paz com todos os inimigos
na cruz cravado com cavilhas ferrugentas
e algumas histórias para contar entre amigos
cujos lamentos já escutamos em surdina
era bom rapaz
não fazia mal a uma moscatinha uma mãe enraivecida que lhe augurava futuros
tinha um pai com quatro pernas de ateísmo
e ia todos os domingos à missa
para ficar sentado na última fila a contar bocejos
era um tipo às direitas
amou como só as mulheres traídas sabem amarde soslaio
pela calada
pendendo para dentro do corpo
à guisa de sufoco sustenido
era destemido quanto baste
para morrer sozinhoe rezava diariamente orações de são francisco
enquanto caminhava descalço sobre a erva
e distraidamente pisava a bosta
do cão que acabara de passear
era tão aluado e distraído
que sonhava com passados vindourose construções de areia onde pudesse desfazer-se da própria cabeça
tão cheia
tão inutilmente cheia
de nomes sem fruto
de termos sem cheiro
de ideias sem fito
era uma jóia de pessoa
das que se trazem ao peitopenduradas ao pescoço
um ornamento de família
herança penhorável para execução de factos
que tudo na sua vida foi simplesmente a eito
conforme a situação o exigiaera o tipo de pessoa que gostamos de ter em casa
para enfeitar o pó
Henrique Fialho, Aqui
terça-feira, 2 de junho de 2015
Agora Cuca dá conselhos para vidas infelizes
- Abraça a teoria de que as únicas coisas que têm valor são aquelas que obténs com intenso esforço ou compromisso. Com o tempo, isso far-te-á desprezar o que te advém pelo acaso e que, afinal, constitui oitenta por cento do que receberás;
- Almeja à ascese. Começa por eliminar os bens materiais supérfluos. Depois torna-te vegetariano e abstémio. Dá o passo final e não faças nada que não passe no crivo do utilitarismo;
- Nunca desistas de coisa alguma. Segue o exemplo de Ahab que perseguiu a baleia branca até à morte. A dele, claro;
- Rodeia-te de pessoas negativas. Quando te faltar uma angústia própria podes sempre adquirir vinte ou trinta emprestadas. Outros ascetas são um sucedâneo a considerar em caso de indisponibilidade momentânea de gente negativa;
- Leva-te a sério. Ter sempre presente a importância da tua pessoa no mundo em geral e na tua aldeia em particular é garantia de uma dose de acrescida conflituosidade indispensável a uma vida verdadeiramente infeliz;
- Parte do princípio que os outros estão todos errados e és tu o único que está certo. Tenta mudá-los. A história regista três ou quatro visionários a cada século. Pode bem ser o teu caso;
- Desenvolve várias fobias e acarinha-as. Poucas coisas terão a capacidade de te tirar tanta liberdade como um comportamento multi-fóbico;
- Lê Cesare Pavese todos os dias. (Não os poemas, que esses são bonitos e logo fúteis. Ver segunda regra). Se isso não te deprimir e fores minimamente letrado, lê Paulo Coelho;
- Torna-te católico para mais facilmente resistires à tentação do suicídio e prolongares a agonia;
- Partilha a tua vida miserável com alguém que não ames. Acompanhado, é mais difícil desviares-te do trilho da tragédia;
- Comprem um apartamento nos subúrbios que vos custe setenta e cinco por cento dos vossos salários;
- Conforta-te com a regra número um. Estás a cumprir a teu plano.
Post sobre nada
Os gritos das gaivotas arrancaram-me da morte doce que há nos restos do sono. Ainda não eram sete horas. Estavam a montar o mundo nas ruas. A estender a manhã, a armar a praia, a abrir o quotidiano. Tanto quanto sei, há anões mágicos contratados para construírem o cenário das cidades.
Entrei no dia empurrada pelo café e pelo jazz e pelo agendamento mental das insignificâncias que compõem as vinte e quatro horas que são a parcela oficial daquilo que se convencionou chamar de existência.
Saí de casa antes das oito da manhã com a certeza de já ter perdido o dia.
Um hino à paranóia
Can you hear me when I'm trapped behind the mirror?
A doppelgänger roaring from my silent kind of furor?
If you're quiet, you can hear the monster breathing…
Do you hear that gentle tapping?
My ugly creature's freezing.
And now's he howling, but I'm muted by the horror.
How he's everywhere and waiting,
now he's just around the corner.
Paranoia backward whispering on my shoulder,
like a wasp is getting nervous, so if I shiver… man, it's over.