terça-feira, 31 de março de 2015

Comunicações intergalácticas

Diverte-me pensar que aí onde te foste enfiar recebeste Herberto com um sorriso desajeitado e uma garrafa de mau vinho tinto. Porque entre os teus atributos e não há morte que branqueie tão pesada verdade, nem de mim seria de esperar que te desculpasse a menor falta, quanto mais esta que é das graves, nunca esteve o da escolha do vinho. 
Herberto ha-de ter-se sentado à tua mesa com um sorriso não mais ajeitado do que o teu e hão-de ter falado da substância dos ossos, da asa esquerda das borboletas, do rasto que deixa a minhoca nipónica, da velocidade dos ponteiros de uma clepsidra reinventada. ou lá essas coisas que os poetas falam quando se juntam à mesa, em redor de uma garrafa de vinho tinto, para mais, quando o vinho é péssimo e ambos estão mortos.
A ferida da tua ausência é chaga que não há meio de criar crosta para depois passar a cicatriz e a seguir a pequena marca e por fim a breve sombra. E se não há corrente de ar, inusitado verso, fotografia esquecida, que não devolva a estupefação da tua permanente indisponibilidade, o que dizer então da morte de um poeta que, ainda por cima, era um dos teus tão poucos poetas. 
Antes que me assombres na memória do jeito de voltar a cabeça para a direita, o ar sério, o maxilar inferior a mover-se lentamente, informo que podes poupar o discurso da antinostalgia. Pelo menos, por aqui, o vinho tinto é sempre de qualidade. 


Manhãs

Da manhã na praia trouxe a concha em cujo nácar, tenho a certeza, acendeu-se hoje o sol.
Foram necessárias muitas manhãs de escuridão para que fosse possível ver uma concha na areia da praia, saber que o sol se acende, ter a certeza que se acende no nácar. 
E agora está ali, em cima da mesa prateada, para que não me esqueça das coisas que sei. 

segunda-feira, 30 de março de 2015

O amor da morte

Entraram no quarto, despiram-se e o que estava escrito que aconteceria, aconteceu enfim, e outra vez, e outra ainda. Ele adormeceu, ela não. Então ela, a morte, levantou-se, abriu a bolsa que tinha deixado na sala e retirou a carta de cor violeta. Olhou em redor como se estivesse à procura de um lugar onde a pudesse deixar, sobre o piano, metida entre as cordas do violoncelo, ou então no próprio quarto, debaixo da almofada em que a cabeça do homem descansava. Não o fez. Saiu para a cozinha, acendeu um fósforo, um fósforo humilde, ela que poderia desfazer o papel com o olhar, reduzi-lo a uma impalpável poeira, ela que poderia pegar-lhe fogo só com o contacto dos dedos, e era um simples fósforo, o fósforo comum, o fósforo de todos os dias, que fazia arder a carta da morte, essa que só a morte poderia destruir. Não ficaram cinzas. A morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras. No dia seguinte ninguém morreu. 

As Intermitências da Morte, José Saramago.


Parece inglória, arrogante, insensata, a minha luta contra Eros, quando até a morte, a morte que de todos os poderes é senhora, se dispõe a pousar a cabeça no cepo do amor, ansiosa por receber a lâmina de uma foice mais poderosa do que a sua, que a decapite e a livre de si própria. Até a morte, senhores. 
(Entretanto acaba de me ocorrer que o amor pode bem ser apenas uma maneira de nos livrarmos de nós próprios).

domingo, 29 de março de 2015

It takes an ocean

Enlouqueci às primeiras horas da madrugada e creio ter vagueado descalça pelos telhados num equilibrismo suicida ente o miar de cio dos gatos e os fiapos de uma lua desistente. Enlouqueci, no aprumo obsessivo do rigor do cliché, com uma camisa de dormir de linho branco a cobrir o peito dos pés e com os cabelos soltos, enormes e desgrenhados. Saltei por entre todos os telhados até ao último. Entrei na noite e percorri a praia com a avidez de quem atravessa a areia escaldante do deserto do meio dia. O mar lambeu-me os pés nus e eu ajoelhei-me sobre as ondas, rogando-lhe aquilo que rogam os loucos que se perdem nas declinações da noite, fazendo das horas vazias o labirinto da amnésia imposta.
Mas o mar não me levou. Nunca me leva. Consome na vocação de guarda prisional a chama do carrasco. O mar é a intransponível fronteira entre a minha insanidade e um resto de memória. 
Acordei como acordam os loucos. Nua e gelada. Pés feridos. Uma alga  nos cabelos. Areia entre os dentes. 

Atavismos

Às vezes penso que a angústia do domingo é uma daquelas coisas que se transmitem nos genes por milénios e milénios, como o medo do fogo e a necessidade de acreditar num deus. De tão intrincada, suspeito mesmo que seja anterior ao conceito "dia útil". A minha é tão poderosa que consegue ser completamente indiferente ao facto de estar de férias. E é também pontual. Faça chuva ou faça sol, esteja eu a fazer o que estiver, apresenta-se-me todas as semanas às cinco da tarde. 

LER

Vale sempre a pena ler a revista LER, quanto mais não seja porque se as pessoas não a lerem ou se, pelo menos, não a comprarem, ela deixará de existir e a mim não me apetece nada que isso aconteça.
Nesta edição, vale sobretudo a pena por um texto de Henrique Raposo sobre as muçulmanas europeias e as consequências sociais de um certo tipo de visão multiculturalista que, aliada à ditadura do politicamente correto, é responsável pela inércia dos europeus perante a violação dos direitos das mulheres muçulmanas na Europa.
Ou de como faca da tolerância tem dois gumes e um deles é usado para talhar a silhueta do fundamentalismo islâmico.

sábado, 28 de março de 2015

Sábado

Trouxe comigo o Herberto, na versão Os Passos em Volta, para almoçarmos em cima do mar e ordenei ao tempo que parasse durante uma hora. Quando o tempo para, não sei se sabem, o mundo deixa de girar. E é um alívio quando finalmente as coisas ficam quietas e se suspende o ruído terrível da grande roda sobre o eixo ferrugento e se congelam as sombras em perpétuo movimento na nossa direção.
Agora, com o tempo finalmente adormecido, restam-me apenas as palavras de Herberto, um pequeno barco à vela que se desloca na linha do horizonte, uma nuvem com a forma do golfinho que se evadiu no mar. 
Daqui, do cimo do presente estagnado, consigo ver o futuro lá longe. Seis ou sete pessoas imóveis deitadas na praia à minha direita; os gestos congelados das famílias sentadas nas esplanadas atrás de mim; os autocarros que vieram para depositar num dos hotéis da minha estância balnear hordas de estudantes famintos de sol e ávidos de ruído. 
Quando os ponteiros do relógio marcarem o fim dos sessenta minutos todos eles voltarão à vida e retomar-se-á o chio permanente da existência em contínuo e voltarão também todas as coisas que não se veem mas que nos pesam nas pálperas, como o passado e o futuro e os respetivos espectros e os objetos que nos escravizam e o mecanismo do quotidiano que nos esmaga, 
Por ora, as sombras ficaram paradas a escassos centímetros das minhas mãos e apenas se ouvem as palavras do Herberto que se espalham pelo mar e pousam no barco que navega na linha do horizonte sob o olhar atento da nuvem que tem a forma do golfinho que se evadiu do mar.
E, assim, parado, o mundo é um lugar quase habitável.

sexta-feira, 27 de março de 2015

Das coisas que fui aprendendo I

1. Não percas muito tempo a negar evidências. Por mais que isso contrarie o teu sentido poético, a água do mar não é azul.
2. As pessoas têm sempre uma excelente justificação para todo o mal que provocam. As explicações dos gestos são a panacéia dos crentes crónicos.
3. Justifica-te o menos possível. Os outros tendem a medir a gravidade das tuas ações pelos esforços que fazes para as justificar.
4. Zanga-te apenas com as pessoas de quem gostas ou admiras. Só essas valem o veneno que fica dentro das tuas próprias veias.
5. Com aqueles de quem gostas ou admiras, comporta-te como um crente crónico. Não procures a evidência do vazio nas suas justificações. É irreversível.
6. Por cada pessoa de quem gostas, admira duas. É importante garantir ao afeto uma larga margem de progressão. 
7. Não te esqueças da regra elencada no ponto 3. 

quinta-feira, 26 de março de 2015

2500

Duas mil e quinhentas vezes, nasceu e pôs-se o sol. E duas mil e quinhentas vezes fez-se noite. Aqui fora. Na rua. Do lado de cá dos muros do teu palácio.
O que te descanso no peito é o peso de uma insónia feita de duas mil e quinhentas noites. 

terça-feira, 24 de março de 2015

Mas todos sabemos que apenas os poetas nunca morrem

Sobre um Poema

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

Herberto Helder

segunda-feira, 23 de março de 2015

Coisas que eu queria ter escrito



NINGUÉM

E um dia chegas a casa, olhas à tua volta, e é como se não tivesses existido, ou como se a tua presença fosse invisível, um dia chegas a casa e nem as paredes consegues tocar, é como se não estivesses, como se não fosses, estares ou não estares é indiferente porque não és, um dia chegas a casa e não reconheces os cheiros, e um dia não reconheces nada, os espelhos não reflectem nada que te seja familiar porque tudo se perdeu como se num incêndio que consumisse tudo o que não fosse matéria, tudo o que dá sentido à matéria, tudo o que faz da matéria algo nosso, e um dia chegas a casa e é como se não tivesses corpo, entras num chat e trocas meia dúzia de palavras sem sentido com alguém que não conheces, alguém que supões não conhecer, brincas com as palavras, fazes das palavras uma cama onde se deitam corpos que não existem, desejos que não se satisfazem, chegas a casa e é como se não chegasses porque a casa desapareceu, saltou para dentro do computador e é lá que toda a vida se manifesta, lá e nos becos onde sombriamente respiras as últimas partículas de oxigénio que a vida te reserva, porque um dia chegas e não sabes, o teu corpo foi dado como desaparecido e ninguém o procura, ninguém o reclama, ninguém.

Henrique Fialho

domingo, 22 de março de 2015

Cortinas

Irremediável como a chuva
é a ausência tatuada no pulso, 
uma nuvem líquida nos olhos estagnados,
a mancha que alastra no peito. 
Tudo irremediável como a chuva 
mais outra noite precoce, 
do lado errado do cair da cortina. 

Irremediável como a chuva 
é a indecisão a apoderar-se dos gestos, 
tentáculos inquietos da saudade. 
- Uma saudade moribunda. 
Afogada. Na água estagnada. Da chuva. Irremediável. 





quinta-feira, 19 de março de 2015

Matrimónio espiritual

Encontro nas palavras de uma personagem de Ibsen a definição possível. 
Pode o espírito autonomizar-se dos nossos projetos, da nossa história e até da nossa vontade racionalmente fundada e enlaçar-se, sem licença, com um outro espírito? 
Talvez um discípulo de Freud, habituado à subjugação do ego, descrente do livre arbítrio, não tivesse dificuldades em aceitar tal rebeldia. 
Mas quando se crê no poder da vontade, acima de todas as coisas, como aceitar um matrimónio espiritual celebrado contra nós próprios? O que fazer com um espírito que se rebela como um filho ingrato? 
Vou mas é comprar sapatos.

segunda-feira, 16 de março de 2015

Elegia dos Amantes Lúcidos

Na girândola das árvores (e não há quem as detenha)
Deixa de fora a tarde o vermelho que a tinge.
Se ao menos tu ficasses na pausa que desenha
O contorno lunar da noite que te finge!

 

Se ao menos eu gelasse uma corda do vento
para encontrar a forma exacta dum violino
Que fosse a sensibilidade deste pensamento
Com que a minha sombra vai pensando o meu destino

 

E não houvesse o sono dum telhado
Entre ter de haver eu e haver o tecto;
E a eternidade não estivesse ao lado
A colocar-nos nas costas as asas dum insecto

 

Meu amor, meu amor, teu gesto nasce
Para partir de ti e ser ao longe
A cor duma cidade que nos pasce
Como a ausência de deus pastando um monge

 

Ah, se uma súbita mão na hora a pique
Tangendo harpas geladas por segredos
Desprendesse uma aragem de repiques
Destes sinos parados pelo medo!

 

Mas só porque vieste fez-se tarde,
Ou é a vida que nasce já tardia
Como uma estrela que se acende e arde
Porque não cabe na rapidez do dia?

 

Nem homem nem mulher. Só a moeda antiga:
Uma inflação de deuses que não pode parar
Como um pássaro cego à nora da intriga
Que é a morte no centro connosco a circular.

 

Será o mesmo tempo que nos cabe?
Talvez sejas a raça prematura
Duma gota de orvalho que se há-de
Negar à minha sede desértica e futura.

 

Como o brilho dum sol partido ao meio
Damos luz pela nostalgia da metade.
Partes para ser gaivota no meu seio.
Mas não trazes no bico uma cidade.

 

Aqui pousou um pássaro de lume
Que deixou um voo subterrâneo
Na repetida vibração do gume
Que cada hora traz à lâmina do crânio.

 

Teus dedos num relógio como a picada duma abelha
A fabricar o mel da estação perdida!
Que quanto a primavera um rouxinol na telha
É toda a melodia que traz na unha a vida.

 

O navio tem dois extremos ermos:
Os cabelos para Vénus e os pés para Marte.
Mas a viagem é o mar com a terra a ver-nos.
E com lenços à vista ninguém parte.

 

Ah, se ao menos eu pudesse agora erguer-me
Como uma pedra pelas minhas mãos futuras
E ficasse para sempre a aquecer-me
Ao sol que cega efémeras criaturas!

 

Se soltasses as aves da rotina
E de um jorro de deuses abrisses a comporta
E reclinada em tua espádua genuína
Eu entrasse num céu sem ter que achar a porta!

 

Se tu viesses cavaleiro branco
Orvalhado pela manhã do meu instinto.
E ficasses a chamar-me como um canto
No porvir do nosso último recinto!

 
 

Se ficássemos espuma de Maio cor-de-rosa
Nas praias donde Maio se retira,
Enrolados nos panos duma paisagem silenciosa
Que fosse a pura sonoridade da ausência duma lira!

 

Ah, as sementes que te exigem em declive
Entre abismos onde nunca te despenhas
E esfumados voos em que te embebes e revives
O que de ti já pousou no cume das montanhas!

 

Inútil decifrarmos este oráculo de ave absorta
Na incontinência do voo que a abrasa.
Se houver um palácio sem porta, talvez seja a porta.
Se houver uma casa sem tecto, talvez seja a casa.

 

Natália Correia, in Passaporte 

domingo, 15 de março de 2015

Ainda sobre a perfeição

Esta música foi-nos patrocinada por um conde insone que se fazia aliviar do tormento das noites intermináveis, com o som do piano. 
Talvez não fosse possível na era do candy crush.

Pastores de gaivotas

Éramos para ser muito felizes numa daquelas casas de madeira pintadas de branco, com um terraço voltado para o mar, a terminar nos limites da areia da praia. 
Dentro de casa ia ser tudo branco à exceção das capas dos livros que me lerias nas manhãs em que nos acordassem os uivos do vento norte. Então ficaria deitada com a cabeça no teu colo e os sentidos alugados a um poema de Wallace ou, havendo sol, a um verso de um qualquer árabe do século XII que por mero acaso tivéssemos desenterrado na véspera. 
Éramos para almoçar em silêncio, na varanda, lado a lado e com os olhos presos no mar, um peixe pescado e assado por ti. Estaria vento mas não nos perturbaríamos com os objetos a fugirem da mesa e a dançarem numa espiral em nosso redor. Nem uma onda morreria antes que a guardássemos na retina. 
Éramos para dançar ao por-do-sol na praia vazia perante uma plateia de gaivotas alinhadas em esquadria e à espera do crepúsculo. 
À noite, centenas de velas iluminariam a banheira vintage, branca, onde me lavarias os cabelos ao som do jazz da Billie Holiday. 
E haveria, por fim, de adormecer como acordei, com a tua voz, por entre os uivos do vento norte, a alimentar-me a alma com a metafísica esdrúxula de uma criatura ainda mais perturbada do que nós dois. 
Éramos para ser pastores de gaivotas. 
Mas depois pensámos melhor e achámos que era mais fácil continuarmos a ser o que não somos. 

Ibsen

Veio a propósito a "A Dama do Mar", de Ibsen.
Ellida, que pensa não ter escolhido, quer sentir-se livre para poder escolher aquilo que, na verdade, já escolheu em liberdade.
Ellida teve sorte. Salvou-a da loucura certa o regresso do fantasma do passado que lhe trouxe de presente a ilusão da liberdade de escolha. Libertou-se. 
Libertamo-nos quando somos livres de rejeitar os fantasmas do passado. 
Sobretudo, aqueles que já rejeitámos.

sábado, 14 de março de 2015

Este blogue também fez este mês cinco anos

Para o ano mando-o para a escola, para ver se aprende a escrever-se a si próprio.

E foi assim que te perdi


Mas entretanto caíram tantas folhas de calendário que me foi impossível manter a memória da pele. Como se a cada banho se esvaíssem as tuas células pelo ralo e se me perdessem as recordações na obscuridade dos subterrâneos interstícios da canalização e do esgoto público. Ainda conjeturei a possibilidade de os ir recuperar junto ao mar. De te ir recuperar junto ao mar. Mas depois lembrei-me que não acredito nos princípios da homeopatia. Não concebo nenhuns efeitos à memória diluída na partícula. 

sexta-feira, 13 de março de 2015

13


Já quase consigo esse nível de abstração a partir do qual se conseguem ver as cores das almas. Na minha, progride-se tranquilamente para o aprofundamento de um negro em dregadeé simétrico. Não gasto os meus preciosos dons de bruxa na autópsia das almas dos outros. Temo que essa visão, se súbita, perturbasse a simetria da minha negra progressão.
Para nós, os loucos, a simetria é uma coisa importante. 

terça-feira, 10 de março de 2015

Piano Song


How long until the roots break
(the roots break)
How long before the shame
(Before the shame)
How long untill she surrenders to the boy with no name?
I'm a stranger here,
Oh dear,
What now?


She never wanted to be
a leaf on the family tree,
taking a road that will lead
to a life she had already seen



segunda-feira, 9 de março de 2015

As minhas veias



A abstração é a mãe de ilimitados equívocos. 
Já fui amada da maneira como se ama a Gioconda; a andorinha que anuncia a chegada da primavera; uma das Tágides; a Salomé do Klimt. Amada na dimensão de boneca de desenho animado japonês, daquelas que saltam e ficam paradas no ar durante vários minutos, em posição de guerreira e com cada fio de cabelo devolvido ao seu lugar de origem. 
Não gostei nada. O embaraço do equívoco é sempre superior à lisonja do sentimento. 
Sou mal agradecida. Porém, rica. Tenho uma caixa de madeira onde guardo a macabra coleção feita dos restos dos amores abstratos. Cartas, poemas, duas ou três fotografias, metade de um bilhete de um concerto, uma pulseira com contas turquesa, a própria da boneca japonesa. E até um caderno de capas pretas que é a prova que retenho dos malefícios da ideia abstrata de mim na criação da má poesia. A boa, que também devo ter inspirado, nunca tive a tentação de guardar. 
Sou uma péssima musa. Entregam-me a bandeja prateada dos sonhos e eu deposito nela as minhas veias. Abertas. 
Desfaço o equívoco. 
Desfazem o amor.
Suponho que as musas nem sequer precisem de ser abraçadas.


Um erro de apreciação

- Um erro de apreciação.
Foi assim que mentirosamente o justifiquei a terceiros quando tive que o justificar a terceiros. Como quem se refere a um eletrodoméstico desprovido das qualidades anunciadas, que se devolve no balcão de uma superfície comercial. 
- Tome este pedaço da minha existência, fique com ele. Não é como se diz na caixa. Fique também com o saco que não me faz falta nenhuma, já tenho lá muitos.

Foi uma justificação prontamente aceite e compreendida. Todos nós cometemos erros de apreciação mas poucos de nós amamos.

sexta-feira, 6 de março de 2015

Tanta realidade

Tanta realidade a entrar-me pela porta e a consumir-me o ar. Trago a realidade atrás de mim no final do dia e deposito-a, ali, na mesa da entrada. Fica a olhar para mim desconfiada. 
A vida está dentro da metade de um verso, na curva segunda de um bolero ou num traço mais azul de uma pintura. 
E hoje vi a lua, em estado pleno. 
Não sei o que faz a realidade, ali à espera, de olhos ávidos, a ameaçar-me...

quarta-feira, 4 de março de 2015

Espelhos

Li em Al Berto,

homens cegos procuram a visão do amor 
onde os dias ergueram esta parede 
intransponível 

E o verso ecoou na retina a imagem reversa. Uma parede, intransponível, à procura da visão do amor dentro dos olhos de um homem que os dias tornaram cego.

domingo, 1 de março de 2015

Os sábios

"Suportar-se-ia que estes homens exercessem os cargos públicos como asnos com uma lira, se nas restantes funções da vida se mostrassem capazes. Convidai um sábio para jantar e ele perturbará a refeição ou com um confrangedor silêncio ou com inconvenientes questiúnculas. Convidai-o para dançar e dir-se-ia um camelo a saltar. Levai-o a um espectáculo e o seu aspecto bastará para impedir que o povo se divirta; será compelido a sair do teatro como o sábio Catão por não abandonar a sua gravidade arrogante. Se intervém numa conversa, é como o lobo na fábula. Se se trata de comprar, de vender, de levar a cabo uma das acções indispensáveis à vida quotidiana, dirás que o sábio não é um homem, mas um cepo. Desta feita não pode ser útil nem para si próprio, nem para a pátria, nem para os seus, porque ignora todas as coisas comuns e porque desconhece opiniões e hábitos recorrentes. Está disparidade total de vida e ideias acarreta necessariamente contra ele o ódio. Mais, que coisa se faz entre os homens que não esteja cheia de loucura, que não seja feita por loucos e para loucos? Se alguém quiser ir contra esta prática universal, o meu conselho é que seguindo o exemplo de Timon, emigre para o deserto e aí desfrute a sós da sua sabedoria." 

Elogio da Loucura, Erasmo de Roterdão 

(Leitura muito recomendável aos Velhos do Restelo e outros arautos do fim do mundo tal como o conhecemos, para que se tranquilizem. Nada de relevante se alterou na sociedade europeia desde 1500, não sendo expectável que seja a geração presente a conseguir o milagre de perturbar tão vetusta serenidade de costumes.)