Foi com Pieter, o instrutor de ski, que passei aquelas férias de neve.
Viajei para a Austria com o meu ex-homem e dois casais de amigos. Um dos casais era composto por dois suecos que tinham nascido com uns esquis nos pés. O outro casal dividia-se entre um marido que detestava qualquer espécie de actividade física ao ar livre e passou as férias a fumar cohibas na varanda do hotel enquanto vigiava os negócios por telemóvel e uma mulher que acumulava suficientes anos de lições privadas para descer uma pista preta sem grandes embaraços.
O meu ex-homem nunca tinha feito ski mas a aptidão natural para qualquer espécie de desporto deixou-o pronto para as pistas logo que lhe responderam a três perguntas: como é que se trava devagar, como é que se trava a grande velocidade, como é que me levanto do chão.
Todos concordámos que a forma de me tornar o menos incomodativa possível era contratar um professor que, na previsível impossibilidade de me ensinar a esquiar numa semana, me mantivesse viva e inteira enquanto eles se divertiam na montanha.
Foi assim que na nossa primeira manhã nos Alpes Austríacos, totalmente inapta para sequer agarrar um par de esquis, mas muito mais bem vestida do que todos os outros, fui depositada aos cuidados de Pieter, a quem o meu ex-homem, antes de se sumir na neve, entregou o cartão do restaurante onde eu deveria ser devolvida para o almoço e lhe desejou um comovido “good luck”.
Pieter era um austríaco de 29 anos, com um estranho gorro com tranças, que gostava de INXS e desprezava as pessoas como eu, a quem só aturava em troca das usurárias quantias que cobrava e que lhe permitiriam um dia abrir a sua própria escola de ski.
Passou a minha primeira manhã a assistir às trinta formas possíveis de se cair na neve, incluindo algumas que os seus anos de experiência nunca lhe tinham mostrado, fazendo sons de conforto e solidariedade enquanto, a cem metros de distância, me observava a levantar e a limpar a neve da boca para depois lhe exibir um sorriso que o encorajasse a não desistir de mim.
Rapidamente, Pieter percebeu que os seus tradicionais métodos de ensino não iriam produzir qualquer efeito e, condoído dos meus esforços e dos meus ossos, despiu o pudor profissional e adoptou o pouco ortodoxo sistema de me dar uma mão, fazendo-me esquiar a seu reboque pela Áustria fora, como se fossemos um daqueles pares da patinagem artística das olimpíadas de inverno, mas sem coreografias autónomas. Para dar realismo à cena, cantava-me músicas dos INXS enquanto descíamos as montanhas naquela curiosa figura, com ele a gritar, feliz, “baby, we are in honeymoon”.
Pieter e eu estabelecemos a nossa própria rotina. Durante a primeira hora da manhã ele fingia que me ensinava na pista das crianças, na segunda hora perdia a paciência e rebocava-me pela montanha até um dos bares onde nos sentávamos a beber cerveja e a comer strudel e passava a terceira hora a rebocar-me até ao restaurante identificado no cartão que todas as manhãs lhe era entregue pelo meu diligente ex-homem.
Eu juntava-me ao grupo para almoçar numa das varandas de um dos spots da montanha, com mantas em cima dos joelhos e vários tipos de vinho tinto nos copos. Depois o grupo lá partia, satisfeito e atlético, para mais uma tarde de ski, enquanto eu ficava na varanda a acenar adeus até eles desaparecerem de vista e serem substituídos pelo meu professor que me vinha buscar para mais uma tarde de INXS.
Às vezes sentávamo-nos no topo da montanha, tirávamos uma das luvas e ficávamos calados a olhar o horizonte e a fumar os meus cigarros. Outras vezes, Pieter contava-me as histórias da sua namorada alemã que vivia na Baviera. Fazia-me perguntas sobre a minha vida pessoal e parecia um pouco indignado com a naturalidade com que eu encarava aquela forma de kindergarten, enquanto o meu ex-homem passava os dias a esquiar com outro casal e uma loura.
As minhas estranhas aulas de ski não passaram despercebidas ao pessoal da estância que dirigia risinhos de escárnio e vingança na direcção do meu ex-homem, quando, já depois da sauna e da sesta, nos viam descer juntos para jantar e experimentar mais vinhos com o resto do grupo. O meu instrutor também não passou despercebido à sueca que, casada com um homem dezassete anos mais velho, passava os jantares a lamentar-se por não precisar de lições.
No nosso último dia de aulas, comigo transformada numa exímia esquiadora siamesa de Pieter, ele tirou do casaco uma garrafa de champagne que bebemos os dois, assim mesmo pela garrafa, no topo da montanha.
Nessa tarde, no regresso ao hotel da estância, Pieter com os meus esquis às costas e ainda de mãos dadas comigo, entregou-me, hesitante, ao meu ex-homem, como uma ama que devolve uma criança, pedindo-lhe, desconfiado, que tomasse conta de mim.
O meu ex-homem assentiu com um riso carregado de ironia. Mas quando chegou a conta do cartão de crédito daquelas férias, já ele se tinha esquecido da promessa e eu nunca soube se o Pieter incluiu na conta das minhas aulas aquela garrafa de champagne.
Antes disso, a descer a montanha sob o efeito do Moet & Chandon, eu e o Pieter caímos na neve e eu fiz uma lesão no joelho da qual nunca me curei. O Pieter explicou-me uma coisa interessante a respeito do ski, que, percebi depois, é igualmente válida a propósito das relações: o problema é cair devagar, honey. Deve-se sempre cair depressa para que os esquis saltem e as pernas não fiquem presas debaixo de nós.
Cair devagar pode provocar traumas irreversíveis.