quinta-feira, 30 de setembro de 2010

(...)

Tudo o que fazem os homens está cheio de loucura. São loucos tratando com loucos. Por conseguinte, se houver uma única cabeça que pretenda opor obstáculo à torrente da multidão, só lhe posso dar um conselho: que, a exemplo de Timão, se retire para um deserto, a fim de aí gozar à vontade dos frutos de sua sabedoria.

Erasmo de Roterdão, Elogio da Loucura

Reflexões Cuquianas

Considerando que Sócrates viveu entre 469 e 339 a.c. e que a actual utilização do papel higiénico só foi descoberta no século VI na China, conclui-se que toda a filosofia socrática foi desenvolvida por um homem que nunca teve o privilégio de usar papel higiénico. E isso, parecendo que não, dá um outro sentido ao Método Socrático.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

A estética do sistema

O relatório que me chegou à secretária tinha quatro conclusões. Na última, uma assistente social, num dia mau, fez constar um prognóstico reservado.
Eu também tinha tido um dia mau. Mandei chamar o rapaz.
Trouxeram-mo hoje em resultado da confluência de dois dias maus na vida de duas mulheres que nunca se viram.
Apareceu sem banho tomado, com um cabelo comprido por lavar e com um T-shirt cheia de nódoas. Expliquei-lhe que não podia comer pastilha elástica na minha presença. Nem cruzar os braços. Nem empoleirar-se na bancada. E que também não podia meter as mãos nos bolsos. O tratamento por pá, como lhe foi dito por três vezes, não era aconselhável a alguém a quem o “sistema” denunciou como protagonista de uma situação de “prognóstico reservado”.
Perguntei-lhe qual era o seu projecto de vida. Respondeu-me que o seu projecto de vida era arranjar os dentes da frente.
Arranjar os dentes, descobri eu depois, era um projecto de vida que o “sistema” considerou válido. Tanto, que até o fez constar do mesmo relatório que o prognosticou reservadamente.
Os papéis dizem que fez vítimas. Mas que a idade lhe permite uma segunda oportunidade. Essa oportunidade ficou dependente do cumprimento das condições que o “sistema”, depois de estudar bem o caso dele, considerou relevantes.
E o “sistema” deu-lhe três tarefas: Aparecer numas reuniões; fazer diligências para arranjar uma actividade; tratar os dentes da frente.
Ele faltou às reuniões todas. Não tentou arranjar outra actividade que não fosse a de continuar a deambular pelas ruas. Mas achou que a única justificação que me devia era o motivo pelo qual não tratou dos dentes.
Encolhi os ombros e mandei-o embora.
A culpa não é dele.
Ele é apenas um dos dentes podres do “sistema”.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

pelo direito a um bolerinho... assim.



...e querer lá saber quem cata quem ou quem sustenta quem.

domingo, 26 de setembro de 2010

Devolve-me os laços, meu amor

Dois anos e cinco meses. Dezenas de pessoas. Cerca de uma centena de jantares. Mais de duas centenas de cafezinhos. Milhares de horas de casting…
…Nem uma ténue ilusão de sentimento.

Outros projectos

Una inquietante mirada de amor porteño

Cálida y cruel

No, no puedo creer que pasó

Que el misterio sensuel de tu risa canyengue

Se apagó


Brindo por esa ilusión de amor porteño

Loco puñal Dulce y fatal, la nostalgia

De un tiempo pedazo de

Nosotros dos


Y yo que pensaba que no me importaba

Que una caricia podía borrar el color

De mi ciudad …


El código oculto de esa mirada

Es como una señal

Y no puedo zafar

Un deseo sutil que temblando me viene a buscar

Gotan Project, Amor Porteno

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Confidências



"Enlouqueço se um dia te perco, eu."



Não há erudição à altura da força avassaladora de um sussurro assim.

afogamento

acordo como se emerge, vendo as bolhas de ar que sobem.
não quero. fecho a boca para aguentar mais um pouco. as pálpebras já em cãibras. o peito ,vazio, a estoirar e a reclamar dolorosamente algo para dentro dos alvéolos. a tona da água que não quero que me chegue. a mão que aperta a garganta. uma pressão que sobe, rápida, pelo rosto acima. um tremor sem nervo.

no afogamento há consciência até muito perto do fim. o último é o momento em que se desiste; mas o corpo não deixa.


há luz e barulho na rua.



quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Um dias destes, num museu de história natural perto de si



As sufragistas assexuadas que tramaram as suas congéneres não sabiam no que nos estavam a meter.
Não é só, nem é pouco, terem condenado as mulheres a uma existência de trabalhos forçados, espremidas entre o trabalho de fora e o trabalho de dentro e a educação das crias e dos pais das crias. E, por vezes, das mães dos pais das crias.
Sob o pretexto da libertação intelectual feminina (por sinal utópica para a maioria dos seres humanos e, especialmente, para os que têm que trabalhar para viver) essas senhoras inconscientes retiraram aos machos o histórico papel social de garantir o sustento das suas mulheres.
Como a natureza nos tem vindo a ensinar, num eco-sistema em que o espaço é limitado, espécie que deixa de ser necessária, extingue-se.
Eles, pobres deles, deixaram de ser manipulados pelas mulheres para passarem a ser ordenados por elas. E, parecendo que não, a alteração faz toda a diferença. Quebrou-se o mítico espaço em que ainda lhes era permitida a errada convicção da supremacia. De repente, as mulheres passaram a atirar-lhes à cara o poder de os despedir. Tanto em casa como nos empregos onde os substituem com uma rapidez assustadora.
Eles, por incapacidade de viver a precariedade do seu estatuto, optaram por se demitir do exercício de qualquer papel, ainda que residual. Desenvolveram enxaquecas, depressões, hábitos depilatórios e, mais recente e dramaticamente, cheiro de mulher.
Vítimas estúpidas de um processo que os levará à eliminação, filhos de mães que os criam palermas ao mesmo tempo que espevitam as filhas fêmeas, nada fazem para recuperar o seu estatuto. Ficam pateticamente contentes por dividir contas, deixam-se conduzir nos automóveis e nada vida, solicitam licenças de parentalidade, levantam tampas de sanitas em vez de exigirem urinóis nas casas de banho, e ainda sorriem à clonagem, inconscientes dos riscos que correm.
Capitu, lamenta a má sorte de já não viver numa sociedade que lhe permita ficar em casa a catar os piolhos da cria. Mas essa é só a face mais pragmática do problema. A outra é a crescente necessidade de passar a catar os machos.

I´ll be there...


Dia horrível. Ressaca de tédio. Mau humor insuportável. Vítimas às dezenas. Tratamento para com os outros no limite dos maus tratos. Algumas observações a raiar o insulto. Gente a fugir à minha frente.
E no final do dia, confirma-se que a maldade nos traz sempre um retorno positivo.
- London film festival???? Estás a gozar? Mas é óbvio que quero ir!!
Quatro anos depois, aquele chapéu da Burberry que a Estrelita me comprou vai finalmente ter uma plateia que o compreende!

Laranjeira

Vê-la doirada, plena.
Colher-lhe todos os frutos. Beber-lhes o sumo inteiro.
Cobrir todos os cabelos das suas flores.
Alisar as suas folhas, todas elas, uma a uma. Dedos em cada nervura, cada veio.
Deixá-la para que ela se encha de vontade, de novo, de se encher ela mesma.


terça-feira, 21 de setembro de 2010

uma moeda


deixa-me dar só mais uma voltinha...

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Eros, o delinquente


A minha formação humanista tem-me impedido de condenar à morte esta criatura desordeira.
Cansada dos seus desacatos e convicta da sua incapacidade de ressocialização, optei por o remeter aos calabouços do esquecimento para que aí apodrecesse. Em silêncio e longe da minha vista. Antes, arranquei-lhe a lira.
Num daqueles momentos em que a distração nos permite a estupidez da benevolência, lá deixei que lhe devolvessem a lira para que se entretivesse no escuro.
Mas, mesmo no breu, o miúdo malévolo soube tocar a música certa para me convencer a autorizar-lhe uma saída precária.
O resultado, como seria expectável, foi um rasto de destruição, seguido das habituais queixas e vítimas de serviço.
O delinquente foi sumariamente devolvido aos calabouços.
Quanto a mim, observo os restos da lira que parti em três ao mesmo tempo que me questiono sobre os fundamentos da minha tal formação humanista.
(Escultura: Eros e Psique, de Antonio Canova)

will you miss me...?


yes. every single second.


O Cilício - Mortificação Voluntária Com Vista à Penitência de Pecados

cilício (latim cilicium, -ii, tecido de pêlo!pelo de cabra)
s. m.
1. Cinto áspero ou eriçado que alguns católicos trazem sobre a pele para mortificação e penitência.
2. Fig. Tormento ou mortificação voluntários.
Confrontar: silício
.
In Dicionário Priberam da Língua Portuguesa

Tu, a falares da tua vida como se ainda fosse minha. Mortificação voluntária com vista à penitência de pecados. Eu, incapaz de me concentrar na tarefa de fingir que te ouço. Fragmentos de amnésia que se espalham pelo meu cérebro. Nesta dimensão: A breve imagem de uma mulher que se maquilha. Com a firmeza de quem se mascara. A mão a desenrolar delicadamente uma meia preta. Colada à perna. Um copo de vodka que cai no chão. O momento em que a campainha anunciou a tua chegada. Inesperada solidez de cristal. A antecipação do som da porta que se há-de fechar nas tuas costas. À saída. Dois risos infantis a desembrulhar o mesmo presente. O nosso infinito, perpétuo, constante, imutável, insaciável e doentio desejo. A aliança a tingir o meu dedo de negro.
E de repente e sem aviso, ser atingida por estilhaços de memórias. Noutra dimensão: Um aeroporto com sotaque espanhol. O abraço do gelo na consolidação do destroço. A tua inexpressiva tenacidade de assassino. Eu a bater de encontro à porta. Os grandes espelhos do elevador a devolverem-me uma expressão absolutamente vazia. O lugar do teu corpo na cama substituído pelo ódio. A violência da dor.
E depois, a insuportável memória a diluir-se na ária de Puccini.
Novamente a mesma mulher ao espelho. Vestindo-se para ser despida. Mortificação voluntária com vista à penitência de pecados. Os teus olhos pousados nos meus sapatos. Um corpo que se encontra no espaço da tua presença. A ganhar terreno à trela da dona. Uma mentirosa sensação de conforto. A tua voz a embalar a garantia de que os aeroportos não têm sotaque espanhol. De que o olhar vazio que vi no elevador não era meu. O movimento dos teus lábios aos quais tirei o som. As tuas mãos na minha garganta. Finalmente o silêncio. O nosso ground zero. Aquele instante em que a anestesia aplaca a dor.
Fragmentos de amnésias e estilhaços de memórias. Estilhaços de memórias e fragmentos de amnésias.

Descalço uns sapatos prateados que não estou certa que me pertençam. Asseguras-me que não os roubei. Foste tu quem os comprou para mim. Embrulhados em papel vegetal branco. Dentro de uma caixa de veludo preto. Pedes-me que te estenda um pé para que o voltes a calçar. Entrego-te uma perna na obediência da cadela que dá a pata ao dono.
Quando já não estiveres aqui serei capaz de me lembrar que, afinal, sempre me pertenceram. Mas também me lembrarei que já não me servem.

Fragmentos de amnésias e estilhaços de memórias.

sábado, 18 de setembro de 2010

Esta semana, lá no meu trabalho (Quando a realidade supera a ficção)


- Quer então dizer que o senhor nega que estas armas tenham sido encontradas na sua posse, dentro do seu carro?
- Eu nego! Não tinha armas nenhumas comigo!
- Está bem! E tem alguma ideia dos motivos pelos quais três agentes da PSP haveriam de decidir inventar isto tudo, pondo a carreira deles em risco? Conhece-os de algum lado? Têm alguma coisa contra si?
- Er...bem...eu não sei, pode ter sido invejas.
- Inveja de quê, já agora?
- Invejas, sei lá...de mim, do meu carro...
-Do seu carro?? Mas diz aqui no auto de notícia que o carro era um Opel Corsa!!!
- É! Mas está em bom estado...

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Ao telefone

- Podemos jantar amanhã?
- Não.
- porquê?
- Porque estou demasiado dorida para apertar o cilício.

Étude Tableau Op. 39 n.2


Rogaram-me que subisse para um simples mas musculado pedestal. E apresentaram-me o meu povo. Apeteceu-me deitar-lhes fogo, mas faltava-me a lira.

Começa o recital. A russa e os seus dez dedos. Na plateia, palhaços tristes, cyborgs, bombistas e gente que nunca tinha visto um piano de perto. E personagens que habitam os anéis de Saturno.

De um dos buracos da cantaria, espreita uma barata que me diz, baixinho, que nem tudo de Rachmaninov lhe bate bem. Encolhe os ombros e some para dentro de uma mala de marca. O chão começa a escorrer de geleia, daquela que se faz em casa. Pouco espessa e vermelha-transparente. Mais uma cor composta. Impossível. A gosma vai acumulando junto à parede das janelas gradeadas. No lugar da russa, eles os dois: ela muito pequenina deliciada com as teclas todas de uma vez, ele a pedir desculpas porque prefere um improviso.

Volta a russa. E o pirata que se espera na praia. Rasgado por todo, sorridente e com trovoada no peito. Não larga o cigarro. E um calendário que desfolha para frente e para trás, fazendo o ano acabar e estagnar de novo e acabar e estagnar de novo, no hoje.

A russa já quase não tem piano. A mim, continuam a lamber os olhos. Muitos deles. O meu corpo a perder gramas, num ritmo certo. Encosto-me cada vez mais aos ossos. E cada adorno que me penduram pesa-me como Júpiter e Urano. Gargantilhas das clavículas até à mandíbula. Anéis. Alianças. Escravas. Alfinetes. Colares de muitas voltas. Negando a gravidade, cada nova jóia aumenta a altura do pedestal.

Pedem-me para experimentar, com a língua, o sabor das nuvens.

A russa acaba. Uma vénia marcada, ridícula, à frente de um banco preto.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

VERMES



Não sei quem foi o autor da popular metáfora das borboletas no estômago.
Sei que foi n´”O Deus das Pequenas Coisas” de Arundhati Roy que li, pela primeira vez, a metaforização da angústia numa traça alojada no peito.
Juntando as duas, parece-me legítimo concluir que as borboletas do estado inicial da paixão tendem a deslocar-se do estômago para o peito e a transformar-se em traças. Onde abrem as asas e esticam as patas. E passam o seu tempo a estraçalhar.
Não tenho nada contra borboletas. Mas sempre detestei as traças.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Sheherazade

- Oh homenzinho – replicou a princesa – eu venho de muito longe e ficaria muito aborrecida se tivesse que voltar para casa sem ter dado execução ao meu intento. Vós falais-me das dificuldades e do perigo de perder a vida, mas não me dizeis quais são essas dificuldades e em que consiste esse perigo. É que eu desejava saber tudo isso para ver se posso ter confiança na minha resolução, na minha coragem e nas minhas forças, ou se não a devo ter.
Então o dervixe repetiu à princesa Parizade tudo aquilo que tinha dito aos príncipes Bahmane e Perviz.
(…)
Quando o dervixe acabou, a princesa replicou:
- Pelo que percebo da vossa fala, a grande dificuldade para ser bem sucedido neste caso é, primeiramente, a de subir à gaiola sem ter medo da algazarra das vozes que se ouvem sem ver ninguém, e, em segundo lugar, a de não olhar para trás. No que respeita a esta última condição, espero que serei suficientemente senhora de mim para a cumprir. Quanto à primeira, julgo que essas vozes, tal como mas descreveis, são capazes de apavorar os mais valentes; mas como em todos os empreendimentos de grande importância e perigosos, não é proibido usar de certa manha, peço-vos que me digais se, neste caso, me posso servir dela, o que é para mim de grande importância.
- E qual era essa manha que desejáveis usar? – perguntou o dervixe.
- Parece-me – respondeu a princesa – que tapando os ouvidos com algodão em rama, por muito fortes e medonhas que possam ser essas vozes, elas seriam ouvidas com muito menos intensidade; como também me fariam menos impressão, eu estaria em melhores condições para não perder o uso da razão.
(…)
A princesa Parizade, depois de ter agradecido ao dervixe e de se ter despedido dele, montou no cavalo, atirou a bola e seguiu-a pelo caminho de onde ela ia a rolar, até que por fim lá parou ao pé da montanha.
A princesa desmontou; tapou os ouvidos com algodão em rama; e, depois de ter estudado bem o caminho que devia seguir para chegar ao cimo da montanha, começou a subir com um passo muito certo e com grande intrepidez. Ouviu as vozes e apercebeu-se então de que o algodão lhe servia de muito. Quanto mais ela ia avançando mais as vozes se tornavam mais fortes e se multiplicavam, mas não a ponto de lhe causar uma impressão capaz de a perturbar. Ouviu vários insultos e uns gracejos picantes relacionados com o seu sexo, a que não ligou e de que até se riu.
“Não me ofendo nem com os vossos insultos, nem com a vossa chacota – disse ela para consigo – podeis dizer mesmo coisas piores, que eu não faço caso nenhum, e vós não me impedireis de seguir o meu caminho.”
Ela subiu até tão alto que por fim já via a gaiola e a ave, a qual, de combinação com as vozes, tratou de a intimidar, gritando-lhe com uma voz tonitroante, apesar da pequenez do seu corpo:
- Doida, afasta-te, não te aproximes!
A princesa, ainda mais animada com isso, sobrou as passadas. Quando se viu perto do final daquela caminhada, atingiu o cimo da montanha onde o terreno era plano; correu direita à gaiola, pôs-lhe a mão em cima e disse para a ave:
- Ave, já te apanhei, embora contra a tua vontade, e tu agora já não me escapas.
(...)
In “História das duas irmãs invejosas da mais nova”, As Mil e Uma Noites, Editorial Estampa, Volume 6.
Post Sriptum: Avisam-se os leitores, aliás ingratos e mudinhos leitores, que a autora deste post se deu ao trabalho de transcrever o texto. Por conseguinte, façam favor de o ler. Todo.

Obsessões interpretativas

Já passei horas dentro deste quadro e ainda não sei o que pensar dele.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Identificação Olfativa


Às vezes a vida prega-nos rasteiras tão inesperadas que a única forma de aliviar o estrondo da queda passa pela auto-recriação.
Ao contrário do que se possa pensar, não há nada de errado em recriar um sistema que substitua um outro que está obsoleto. Na natureza, os animais fazem-no continuamente sem que os David Attenborough da vida andem para aí a apontar-lhes o dedo, alegando que deveriam ter preferido morrer a criar asas. Ou a deixar de as ter.
Os processos de auto-recriação em pessoas relativamente determinadas são fáceis, rápidos e eficazes. Mas precisam de um bom perfume. Uma constante e discreta presença que as lembre que não são um mero avatar de si próprias.
E foi assim que o facto de se ter tornado impossível adquirir o meu perfume em Portugal se transformou numa tragédia existencial com contornos niilistas.
Há mais nostalgia naquele momento em que saí da água fria da piscina e reencontrei o meu cheiro na toalha de praia usada do que no último encontro com algumas das muitas pessoas que já perdi.
De onde sou forçada a concluir que, ao contrário do que acontece com as pessoas, os cheiros, pela intensa capacidade de entranhamento, podem tornar-se absolutamente insubstituíveis.

Whatever works

Procurar a felicidade fora do circuito clássico é mais um acto de desistência do que de coragem.
Aliás, nas histórias que conheço, o amor outsider foi, precisamente, o prémio que se obteve por se ter desistido.
Raramente funciona.
Infelizmente, há preconceitos que assentam num profundo lastro racional.

sábado, 11 de setembro de 2010

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Desligaste o som às gaivotas porque te fazem lembrar o sítio onde não poderás voltar

Quiseste a tua vida asséptica e desinfectada. Traçaste-a, assim, com linhas geométricas minimalistas. Sem beirais para andorinhas. Avenidas largas para passagens rápidas. Inexistentes obstáculos a atrasarem-te na prisão de um detalhe.
A condizer, arquitectaste uma casa branca sem cheiros, sais, ou molduras com sorrisos de mortos ou moribundos.
Apenas o permanente silvo do silêncio nas paredes vazias. Cheias da amplitude da tua existência. Para que nunca toques em nada. Para que nunca nada toque em ti. Para que tu e a tua sombra não se ouçam mutuamente.

Não tinhas má intenção. Limitaste-te a fugir da confusão circular de uma medina marroquina onde, por engano, na náusea das especiarias, acabaste por vomitar a alma.

Tens a tua vida asséptica e desinfectada. Como a desenhaste. Podes vivê-la na cápsula de vácuo que é a tua casa.

Mas o deserto, visto de perto, nunca é assim tão perfeito.
E o vento frio da noite faz feridas nos lábios. Daquelas que infectam.

No Reset

Receitas caseiras de chá calmante. Imersão corporal em banheiras de espuma. Meditação budista de nível dois. Exercícios cerebrais de exaustão mental. Conversas imaginárias com todo o tipo de divindades crueis. Horas de televendas com máquinas infernais que nos esculpem o corpo enquanto comemos bolachas de manteiga. Teletransporte para uma dimensão virtual com homens de orelhas nos pés. Aumentar a escuridão. Sair do quarto. Copos de pé alto com qualquer coisa que embebede. Voltar para o quarto. Diminuir a escuridão. Gente na BBC a discutir a importância da diminuição do gado ovino num lugar que não tenho a certeza que exista. Calor. Frio. Temperatura irritantemente perfeita. Drogas médicas que prometem o milagre da libertação da racionalidade. Escolher um quadro dentro do qual me pareça possível adormecer.
Noite após noite, após noite, após noite, após noite.
E hoje, outra vez, ela vai estar á minha espera, sentada num canto do quarto com um sorriso demente…

O tupi de quem fizeram um apache

Os pés sempre sujos de terra vermelha. Não sabe dizer ao certo quantas tonalidades de verde conhece. Nem descrever o peso das gotas de chuva que por vezes cai em cortina.
O tamanho dos bichos. O açúcar da fruta.


Vestiram-lhe couro em franjas. Trocaram-lhe as penas coloridas por outras, só pretas nas pontas. Calçaram-no. Partiram-lhe o arco e todas as flechas que trazia consigo, estas em três.

Um dia, quis voltar. Mandioca. Feijãocomarroz. Uma vontade louca.
Os bichos não eram os mesmos. Teve calor e quis tirar a roupa. Mas não conseguia descalçar as alpargatas. Desconforto.

Voltou para o hotel ***** com vista para o céu. Tomou um banho longo. Definitivo.
Quando olhou o espelho, era cara-pálida. Para sempre.

The bathtub



your skin is smoother, underwater.



quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Em casa

E tu…? Tu, que dizes?
Eu? Digo que vivo contigo.



Um palhaço triste e uma bailarina velha.
Uma casa de jantar. Sombras de mogno que escorrem para o tecto.
Molduras de livros, de músicas, de pinturas. Aqueles, só capas. As outras, riscadas. Estas, sem vida.

Cheira a flores finadas pelos pés. A fruta passada. A linho guardado.

Loiça de salão. Prata de lei. Cristais checos.

Casca de ovo.

As fotografias. Cartazes de peças. Estiveram em cartaz por um momento só. O público, fiel, era sempre o mesmo. Agora, nem público.

Veludo alemão. Brocados. Tacos. Em espinha.
Luzes sem brilho. Pedras geladas.
Coisas que perderam o entusiasmo de tanto ouvir o vosso silêncio.


quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Grandes Filósofos

- "I do love you and you know there is something very important we need to do as soon as possible."
- "What's that?"
- "Fuck!"

in Eyes Wide Shut (1999)

Outras prisões


Pode-se estar preso dentro de um corpo e pode estar-se preso dentro de um cérebro. E a última, não deixa de ser uma espécie de tetraplegia.

Incapacidades

Uma mulher pode ter lido Tolstoi aos 13 anos, Nabokov aos 14, esmifrado Sartre inteiro. Ter-se apaixonado por Soren kierkgaard, decorado meio dicionário de mitologia grega, saber quem foram Keynes, Smith e até Havelmo. Conhecer as fases de Picasso, distinguir um Monet de um Manet, identificar as influências de Hieronymus Bosche em Miró, reconhecer de cor os quadros de Hopper. Ter decorado as capitais de 100 países. Visitado um número significativo deles. Saber que o filme os Americanos se baseou num livro de Raymond Carver. E que Hitchcock dava cabo da cabeça às suas actrizes. Ligar o conceito de alavancagem aos mercados financeiros. Compreender os motivos pelos quais o cross euro-dolar já deu o que tinha a dar em matéria de Forex. Saber o que é uma operação reverse stock split. Conhecer os melhores restaurantes de take away de Lisboa. Fingir na perfeição que o jantar foi cozinhado por si. Não ficar imune às vantagens do linho egípcio. E explicar de cor o processo de construção do tapete de uma auto-estrada, analisando a problemática do betuminoso. Dissertar sobre a relação entre a teoria da poison tree a desconfiança no sistema judicial. Pode tratar por tu as leis dos homens. As nossas e as dos outros. E ainda as leis do karma. Identificar um Puccini ao segundo décimo. Saber a diferença entre o Bruegel pai e o Bruegel filho. Conhecer o nome de vinte ossos do corpo humano. Conseguir adaptar um medicamento para o reumático aos sintomas da gripe. Reconhecer uns Jimmy Choo estejam em que pés estiverem. Ser uma detectora humana de candonga de luxo. Ter capacidade para perguntar onde fica a casa de banho em sete línguas diferentes.

Mas do que lhe servem estas coisas todas, quando está em casa cheia de calor e não consegue descobrir como se colocam duas pilhas no comando do ar condicionado?

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Daddy's Little Girl


Para além de me teres dado um feitio irascível,
uns olhos impossíveis de maquilhar em degradée,
um nariz comprido de esfinge
e de me teres transformado numa paddock girl logo aos 4 anos de idade ao colocares-me no colo do Emerson F. himself,
ensinaste-me a adorar esta foto e a comentar, sem grandes gaffes, um combate de boxe.
Amo-te Papá.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Ainda a banhos


No domingo à tarde a Estrelita banhou-se, com deleite, em águas destas.

Conversas imaginárias com Deus; Cuca;

Deus: Talvez, se te deitasses no sofá e conseguisses rever o momento em que me abandonaste, conseguíssemos resolver este problema…
C: Se me deitasse no sofá, adormecia. Não sei se já reparaste, mas eu trabalho. Lembras-te? É que houve “alguém” que nunca me entregou o prémio do euromilhões.
Deus: Estás a ver? Resumes tudo aos bens materiais! Que raio de pai seria eu para ti se te impedisse de descobrir que só na espiritualidade encontrarás o fim dessa inquietude?
C: Serias um pai preocupado com a tua herdeira que, finalmente, poderia comprar o tempo necessário para reflectir.
Deus: És uma chantagista! É por isso que nunca te faço as vontades. Sinto que não devo alimentar os teus caprichos.
C: será? Ou será, antes, que não fazes porque não podes fazer? Porque não sabes. Porque não és omnipotente. Porque és um inútil preguiçoso. Porque nem sequer existes…
Deus: Não me tentes manipular!!
C: Olha que para deus, estás a ficar com um discurso muito parecido com o do meu ex…
Deus : Tu não eras assim antes de ler Nietzsche! Se tivesses tido a paciência de chegar ao fim da obra terias percebido que ele enlouqueceu por não ter outra criatura para colocar no meu lugar. Um lugar demasiado importante para ser ocupado pelo vazio.
C: Enganas-te. Ele enlouqueceu primeiro e concluiu isso depois. Além disso, subestimas-me se pensas que dois livros de mensagens encriptadas são o suficiente para me induzir uma crise espiritual. Nem que fosse pelo meu ódio aos clichés! Jamais seria assim tão previsível.
Deus: Proporcionei-te aquele encontro com Rembrandt, a sós num canto do museu, para que fosses atingida pelo impacto da espiritualidade…
C: Ai sim? Já que foste tu que o proporcionaste, concluo que me estejas a dever o dinheiro que me custaram essas férias. É que eu não me teletransportei para o museu, lembras-te?
Deus: Os sinais estavam lá todos…não sei porque te recusas a ver todas as migalhas que te coloco na direcção de casa.
C: Tens que experimentar com chocolates! Pode ser que resulte melhor. Já agora, porque é que eu haveria de querer regressar a uma casa onde nem sequer me lembro de ter estado?
Deus: Minha filha, o caminho da paz começa no reencontro com a pureza que um dia existiu dentro de nós…
C: Óh! Pelo amor da Santa! Agora falas como uma testemunha de Jeová! Vá, sai lá de dentro do meu carro que tenho que atender o telemóvel e não te quero aqui a ouvir a conversa!

domingo, 5 de setembro de 2010

Segue o teu destino

Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

Fernando Pessoa (in Odes de Ricardo Reis)

coisas simples

O silêncio. A ponta dos dedos da tua mão direita no meu pulso esquerdo. A proximidade do chão. Um pé sobre o outro. Os filmes em plano de fundo a concentrar toda a acção da sala. Crepes de chocolate com gelado de noz. Relógios de pulso avariados no tempo. Tonalidades de pele que mudam com as horas do dia. Pimenta com todas as espécies de massa italiana. Imobilizar-me no teu olhar. Outra vez o silêncio. Um recado e um poema.


A minha mãe é uma sereia (!?)


Uma blusa por causa da saia comprada na passada 5ª feira. Fica a faltar o par de sapatos, porque todos aqueles que tenho não ficam impec com a saia e a blusa. Oh mãe, esses de que falas não têm nada a ver. Mais um giro. Par de sapatos encontrado, pena não ter sido o mais em conta, ...tens um dedinho para estas coisas. Entretanto, da parafarmácia sai um saco com 4 caixas de Memofit e uma lata das grandes de Ecophane em pó para ajudar os cabelos e as unhas a resistirem às agruras outonais. Mais umas tralhas, entre as quais creme para colocar nos cabelos antes de usar o ferro que a Cuca recomendou e que já se tem mas se anda a usar apenas nos 170º porque ainda não tínhamos o tal produto. Agora é que vai ser, vamos aos 230º para ficar lisinho espelho (termo técnico inventado por moi).


Pausa para o chá, com refrescos. Blá blá blá e carros. Adoro falar de carros, quero um novo, quero muito, não já porque não vale a pena. É para quando acabar o desterro alfacinha, mamã. E porque não um conversível? - depois de tantos embarques e desembarques, por vezes esta mulher nem sabe de que lado do Atlântico está, - Mamã, pelo amor de Deus, não fales como o Roberto Leal! Blá blá blá, côr, estofos, e não quero gps pois sinto-me bruta a ouvir uma Sandrine qualquer a mandar-me virar aqui e ali. Descapotável...? Mãe, já sabes o que penso de carros de empreiteiros. Hum... Só se fosse para ir a um drive in de vez em quando.



Total SILÊNCIO, olhos verde-garrafa (as minhas cores têm, sempre que possível, nomes compostos) pregados na cadeira vazia ao seu lado.



Mãe...?



Pois filha, não sei, isso dos drive in... acho... que me lembre só fui uma vez, antes de conhecer o teu pai... e fomos 4 pessoas. E... é que isso não tinha lá grande reputação... sabes...?
É? E que filme foram vêr?
Ah, sei lá filha...!










X-Acto


Medusa tenta desesperadamente recortar Bogart da chachada que é Casablanca...




sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Ancestrais vícios burgueses

Entrei na pastelaria para comprar uns bolinhos de sortido húngaro.
O ambiente era exactamente igual aos dos jogos de futebol do mundial. Tremoços e amendoins acompanhados por cervejas geladas. Clima de expectativa e festa. Insultos e palavrões dirigidos a jogadores e árbitros.
No plasma, em rodapé, em vez de um score de golos, havia um score de penas de prisão.
Também havia um senhor advogado a anunciar que o reino das trevas se abateu hoje sobre nós.
O povo riu-se.
Eu paguei os meus bolinhos de sortido húngaro e saí.
Envergonhada.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Grandes Filósofos


Ivo Pitanguy (born in Belo Horizonte, Brazil - 1926) says he has never opted for an operation himself. “Of course I could be much better if I had, but I tolerate myself. My ego is transcendent.”

Querida Amiga RELOADED


Desta vez chegaste-me sob a forma de uma insónia severa. Só me largaste depois das 4h57, que foram os últimos números que li.

Muito oportuna, como sempre, e tendo em consideração o que comemorei ontem. Tu e o teu sorriso estúpido de quando bebias uns copos a mais. E as tuas DrMartens. Ridícula, pseudometaleira. Nós, no inferno do States. Nós, nas escadas da Capela, à sombra. Nós, na fila das Químicas. Na casa do amigo do amigo do amigo não sei de quem, onde te fui resgatar “muito fora” numa manhã de 6.ª feira. Os nossos jantares apenas de brócolos, para emagrecer... sim, eu uma mulher adulta que pesava 42 kgs e precisava muito de emagrecer. Noites em forma de gargalhada. Viagens de comboio. Bilhetes Gerais da Q.. Chá Dançante e pernas cheias de base. O boob job que íamos fazer assim que arranjássemos emprego.
Encheste o meu quarto com a tua tralha. E todas as fotografias que rasguei, exibiste-as coladinhas uma a uma, sem lhes faltar qualquer pedacinho.
Como é que volta e meia ainda rastejas para fora do teu ossário, CABRA!?

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Cada um tem o que merece...

Há fotógrafos que têm a mão de Deus...





Eu tenho que apanhar com a mão da Estrelita.

O Tenebroso Regresso de Cuca II


“Qual é o problema?” Pergunta-me, ao telefone, a simpática senhora de um instituto público que se encarrega de resolver problemas.

O problema é que eu prefiro o pequeno-almoço em frente ao mar ao café miserável sacado na máquina da entrada que, ainda por cima, me queimou os dedos enquanto eu aguentei o minuto e meio que o elevador demorou a chegar ao meu piso.
O problema é que tive que ordenar uma revista a mim própria para me auto-apreender todos os enfeites com conchas, estrelas, fitas e fitinhas que não tivessem três marcas legais.
O problema é que apesar de gostar muito de parecer 14 centímetros mais alta, o que eu queria mesmo era continuar a usar havaianas, de preferência douradas e com os pés cheios de areia por baixo.
O problema é que o preto fica terrivelmente mal com o meu bronzeado e o mesmo se diga do meu habitual sorriso n.º 2, motivo pelo qual fui obrigada a substituir o preto pelo azul escuro e o sorriso n.º 2 por uma expressão imperturbável no limite do socialmente bem educado mas dois tons abaixo do simpático.
O problema é que tal como as bestas farejam as vítimas, as urgências, as desgraças, as tragédias a reclamar intervenção humana pronta, farejaram o meu regresso e decidiram suspender as suas férias para me atazanar o dia inteiro.
O problema é que para resolver essa panóplia de chatices góticas eu precisava de não me ter esquecido da password de acesso a um sistema informático que me permite assinar ordens.

E, por fim, o problema é que pressinto que nem este último problema a senhora do instituto público que se encarrega de resolver problemas vai ser capaz de solucionar.

O Tenebroso Regresso de Cuca I

Pelas 14 horas, recusando-se a repetir a frase: “foram boas, obrigada. E as suas?”, Cuca tranca-se no seu gabinete, coloca o telemóvel em modo “mute” para não ser denunciada e faz de conta que não está cá.

Ouvem-se uns passinhos nervosos e desconfiados do lado de fora. Cuca, armada com a faca do papel, está firmemente decidida a assassinar qualquer criatura que ouse entrar aqui com a chave suplente e perguntar como foram as férias.