segunda-feira, 30 de outubro de 2017

cair

Antecipo a queda, rápida e inevitável. Um princípio de dor que é o pasmo a dissipar-se. As mãos ainda no chão e o corpo já erguido, a obedecer à lei da gravidade. Reposiciono os ossos e sacudo-me, como se sacodem os cães quando percebem que se magoaram. A queda será mais leve porque a rua estará vazia. Para não escorregar, atiro-me ao chão.

sábado, 28 de outubro de 2017

funambulismo

De joelhos, procurei debaixo da cama a velha caixa de prata. Arrastei-a para o fiapo de luz lunar, retirei-lhe a tampa pesada, reencontrei as minhas velhas cordas de funambulista. 
Passei metade da noite a atá-la entre as estrelas, com nós de marinheiro. Na outra metade, atravessei inteira uma constelação menor. 
Os passos são mais lentos, mas os pés escorregam menos. 
A noite, essa, é tão profunda, assustadora e densa como nos primeiros dias.

domingo, 22 de outubro de 2017

Fábula

que não sabia, noite, o cerne das palavras
rumo ao tempo, dia, quando o que fomos
era um campo resistindo, noite, ao avanço 
da luz pelo ombro do dia, perguntaste, noite,
Porque é que não pode ser sempre assim,
um dia, uma noite, e haver alguma verdade
nisto, Como por exemplo o quê, perguntei-te,
Como por exemplo nós, respondeu alguém,
mas então a noite já se misturava com o dia
e o universo amanhecia num leve tom diferente


Rui Costa, Mike Tyson para Principiantes, Assírio & Alvim

sábado, 21 de outubro de 2017

Ist mir mîn leben getroumet, oder ist es wâr?

Todas as albas trazem a sombra de muitas ausências que são uma única. Ao acordar, se estender os dedos, quase que ainda consigo tocar a água do Nilo, a lama do Assuão, uma concreta palmeira das Caraíbas, um dragão pendurado num prédio de Veneza, o botão do velho elevador a que demos um nome que já esqueci, os pés nus do Eros de Caravaggio, o portão de ferro de um palácio abandonado, o pássaro que veio morrer aos meus pés.
Como no verso de von der Vogelweide, também eu não sei se sonhei a minha vida ou se é verdadeira.

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Esta tão doce banalidade

Veio a chuva, veio a noite, veio o tédio na curva da casa que já me pertence. 
O poeta dorme ao lado no livro fechado e gosto sempre de pensar no que diria sobre as porcelanas no armário. Tantos tachos, tantas velas, naperons bordados que são uma estaca espetada no peito de quem tanta diferença esperou de mim.
Não devemos ter vergonha de ser apenas isto. Uma mulher também se mede pelo número de faqueiros que tem à sua disposição. É um critério tão válido como outro qualquer. Acumulo mobiliário com a mesma alegria com que antes acumulei gotas de chuva. Não me interessa a deceção espelhada nos cantos dos lábios do poeta que dorme ao lado no livro fechado. Posso bem ter descoberto a receita para a sobrevivência: esta tão doce banalidade.

domingo, 15 de outubro de 2017

Por um ciclone

Não sei, não sei a quem, juraria por deus se fosse de jurar e logo de jurar por deus, não sei a quem, dizia, pode agradar este bizarro outono de folhas que se acamam pelas vielas à miserável temperatura de trinta e três graus.
Preciso de um início de frio que devolva a coerência ao mundo. Ou, em alternativa, que as folhas desistam de vez de cair e declarem suspensa a estação. Preciso de uma rebelião organizada da natureza. De um ciclone que agite a cauda e arraste para o vórtice os restos putrefactos de um verão morto.
Estas folhas que hoje se passeiam sozinhas pelo chão e se enrolam em pés descalços, recebo-as com o asco da cuspidela que insulta a nostalgia.
Todas as noites abro as minhas janelas à espera do frio; pinto-me de índia e danço nua pela chuva, para, depois, acordar neste pesadelo de árvores que se esvaem à temperatura do corpo.
Não sei, juro por deus que não sei, a quem possa agradar tal desarrumação do universo.

sábado, 14 de outubro de 2017

Finalistas

Recebi dois ou três recados do além em formato de poesia póstuma.
Antes de fechar o livro, marquei-o com um anjo, de olhos abertos, preso por um fio dourado. Pendurado no poema, o anjo de olhos abertos afasta os cães cegos pendurados no tecto que afligiam o poeta nas noites de febre.
O anjo zela o sono eterno do poeta que zelou pelos olhos abertos dos anjos.

terça-feira, 10 de outubro de 2017

a língua das aves


Ouvi-o o mais atentamente que consegui. Compreendi todos os seus estados: o entusiasmo disfarçado; uma felicidade infantil; o medo animal e, por fim, a esperança no fundo da caixa. 
Porém, ocorre-me agora que não percebi uma única frase das que me dirigiu. 
Talvez, com o tempo, tenhamos aprendido a língua das aves. 
É supérfluo o vocabulário dos homens quando é sabido que lhes sobreviveremos muitos milénios e tudo o que precisamos ouvir é um fio de voz, preso ao coração. 

sábado, 7 de outubro de 2017

Late for the moon

Ia alta a lua.
Demasiado para se fazer espelhar
Na água que escapou do rio.

Uma lua inatingível 
Sobre um leito de lama.

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Caderno de encargos

Exigir-lhe-ei a lua, plena, a nascer sobre os velhos telhados da Lisboa nova. E a luz que têm as tardes que terminam no exato instante de um começo. Nem vento, nem brisa do deserto, nem um resto de areia entre os dentes. Exigir-lhe-ei o jardim de laranjeiras; a sombra ardente do início dos sonhos; a casa na árvore no cimo da avenida de tílias. Exigir-lhe-ei as linhas da mão; o mapa dos dias que não chegaram; a bússola que esconde dentro de peito. 
Tenho os dedos vazios, mas pagarei a crédito.